Anita Malfatti (1889-1964) escreveu a sua autobiografia com pincel, cores, talento e alma, itens que a imortalizaram. Marta Rossetti Batista, uma apaixonada admiradora da pintora desde os anos 1980, quando defendeu dissertação de mestrado sobre ela, reescreveu aquela biografia por meio de pesquisas que acrescentaram dados novos e que resultaram num belo livro: “Anita Malfatti no tempo e no Espaço”. Nesta obra de fôlego publicada pela Editora 34, percebe-se, desde a sua embalagem, a representação de tudo de bom que Anita Malfatti foi e é para a arte nacional. A biografada confirma a sua imortalidade e a biógrafa segue o rastro da artista, publicando dois volumes contendo frases, parágrafos e capítulos que encantam o leitor pela riqueza de detalhes das grandezas e mesquinharias que envolveram a vida da pintora brasileira.

O primeiro descreve a sua vida e as suas vicissitudes. Contém apenas algumas ilustrações a cores, a confirmar a importância destas na sua obra. No segundo, há o registro de centenas de óleos, desenhos e aquarelas, um catálogo raisonée da pintora, com a desvantagem de ser em preto e branco. Dommage! As arrasadoras cores de seus quadros e o expressionismo de sua pintura, uma novidade incompreensível e erroneamente chamada de impressionismo no Brasil de então, acordaram as artes plásticas do gigante adormecido em berço esplêndido de 1917. Sem Lasar Segall, primeiro modernista a expor no Brasil, e Anita Malfatti, com certeza, não teríamos tido a Semana de Arte Moderna de 1922. Por isso, a ausência de maior quantidade de reproduções a cores é um incompreensível pecado da editora que prima pela beleza de suas edições.

Naquele ano de 1917 Anita foi corajosa o suficiente para, depois de receber a visita de vários intelectuais e de novos artistas, inclusive Di Cavalcanti, aceitar a sugestão deles e mostrar publicamente as obras que estavam no seu ateliê e que, todos concordavam, eram uma nova pintura no Brasil. Dessa exposição se fala até hoje e é objeto de dezenas de páginas do livro de Marta Rossetti. Nem poderia ser diferente, tão grande é a sua importância hoje. Difícil era compreendê-la naqueles anos de guerra na Europa e num país de jecas. O Rio de Janeiro, sempre tão culto e avançado, só aceitaria os modernistas a partir de 1950, assegura Antônio Bento, testemunha histórico e crítico de arte. É esse o mais provável motivo de Di Cavalcanti, um descarado apaixonado pela Cidade Maravilhosa, ter permanecido anos em São Paulo e ali ter criado a célebre Semana, cinco anos depois da exposição de Anita.

São Paulo não era apenas o estado de origem de Anita, mas o único capaz de compreendê-la. A pujanças agrícola e industrial, criadora de riquezas, e a abertura intelectual para aceitar novidades, confirmadas pelos seus amigos artistas e admiradores, fazia de São Paulo o lugar ideal para apresentar qualquer novidade. E ela foi aceita e admirada. Sua exposição corria os primeiros oito dias de sucesso de público e de venda, quando Monteiro Lobato a demoliu numa crítica que fez o público mudar de opinião e alguns compradores desistirem da aquisição de alguns quadros. Malfatti teve poucos defensores de sua nova arte, exceto Mário de Andrade (sempre ele!). Nem mesmo aqueles que, cinco anos depois, seriam integrantes da Semana de Arte de 22 publicaram algo em sua defesa. A partir daí, as biografias de Monteiro Lobato e da pintora ficaram ligadas pelos laços do ressentimento e das mútuas incompreensões.

José Bento Monteiro Lobato era ferrenho defensor dos acadêmicos e morreu em 1948 falando mal do modernismo, dos seus autores e das suas obras. Marta Rossetti Batista informa que o autor de Urupês era um escritor interessado em ser pintor. Não tinha talento para essa atividade. Teria o trabalho de Anita ativado no seu inconsciente aquilo que ele gostaria de ter descoberto, pintado e exposto? Teria sido Anita, para o escritor, uma espécie de imagem especular, cuja entrada Lobato jamais acharia e que, inconscientemente, compreendeu que Anita encontrou, despertando-lhe ódio? Como compreender esse desproporcional sentimento contido numa matéria publicada no Estado de São Paulo de 20 de dezembro de 1917, na qual há reconhecimento do talento da pintora? A matéria foi provocadora de paralisante perplexidade de Anita. Sua resposta demorou 30 anos “não sou mistificadora e nem paranóica”, declarou ela, um ano antes da morte de Lobato, quando ela estava consagrada. O incompreensível ódio do bravo, criativo e nacionalista escritor ficou ratificado com a republicação do texto em seu livro de 1919 “Idéias de Jeca Tatú”, título que hoje é ato falho e cruel ironia em artes plásticas contra o seu autor. Maldade maior: neste volume ele modifica o título da matéria para “Paranóia ou Mystificação?”. Monteiro Lobato não somente confirma todo o texto anterior relembrando ao grande público algo que ele estava esquecendo, como ratifica opinião que seria reservada aos chefes dos inexistentes nazismo e fascismo, surgidos quase vinte anos depois no Velho Continente, e do comunismo a surgir em 1917: para Lobato as novas artes, todos os “ismos” não passavam de “arte degenerada” e “novo mal”.

Como entender ainda a reação de Anita, tão talentosa quanto aparentemente insegura de se sentir tão vilipendiada com a opinião de apenas um escritor importante, quando havia vários intelectuais aplaudindo-a nos bastidores? De forma paradoxal as explicações podem ser a sua pouca idade, 28 anos, e o fato de ser mulher atuante, intelectual, viajada e talentosa no início do século 20. Se hoje esses são atributos garantidores de sucesso para qualquer mulher, naquele ano essas vantagens a fizeram se sentir sozinha a lutar contra um mundo machista.

Opinião muito, muito mais devastadora e demoníaca foi publicada em São Paulo em A Gazeta de 22 de fevereiro de 1922 por um certo Pauci Vero Electro, pseudônimo ou anagrama a ser ainda pesquisado, contrária à pintura de Di Cavalcanti, exposta no Teatro Municipal naquela Semana. Vale a transcrição: “O arlequim menino, o folião da cor, um títere da pintura, é o Sr. Di Cavalcanti, que por ser de fato um molecote ainda em cueiros, é quase irresponsável pelos atentos burlescos que pratica, pois nunca empreendeu nada em sua vida: desenho, cor, proporções, perspectiva são para ele verdadeiros logogrifos. Enquanto não os resolve, vai pacificamente masturbando telas abracadabrantes, dolorosos produtos de um onanismo cerebral desenfreado, próprio da idade, infelizmente, e que só com a idade passará. A sua obra não merece ser considerada. É um menino vicioso, que faz coisas feias pelos cantos da arte, de onde será enxotado a correiadas”. (A Arte no Brasil, v. 2, p. 681/682, Abril, 1979). Não há registro de que Di Cavalcanti tenha sequer deixado o bar um pouco mais cedo que o habitual naquele dia, deprimido por ter lido essa crítica de um desconhecido que tinha prestigio para publicar, mas sem coragem para se identificar. Se tivesse, seria lembrado e colocado no mesmo e imperdoável bestiário onde hoje se encontra Monteiro Lobato quando se fala em artes plásticas.

A crítica de Lobato doeu tão fundo em Anita que ela foi “aprender” a desenhar novamente. Guardadas as proporções entre a reação de Anita e aquela do pintor, hoje não existiria Di Cavalcanti se ele desse o mínimo crédito ao vergonhoso parágrafo acima. A mesma opinião daquele Pauci Electro não foi reservada a Vicente do Rego Monteiro, três anos mais jovem que Di e que, por vários motivos, inclusive políticos, se refugiou em Paris por quase toda a sua vida. Durante anos Vicente brilhou na Cidade-Luz e ficou esquecido no Brasil. Voltou durante a Segunda Grande Guerra e nos anos 1960, sem imaginar que o Partidão não havia perdoado a sua preferência política pelo anacrônico monarquismo.

Os dois volumes de Marta Rossetti Batista são um marco na história das artes plásticas brasileiras neste ano do centenário do cubismo e dos 85 anos da Semana de 1922 pela clareza de texto, cronologia dos fatos e grandeza da pesquisa. Ambos são recomendados aos colecionadores, que (re)conhecerão a obra de uma das maiores pintoras brasileiras. É recomendado ainda ao grande público, vítima de certas críticas contendo algaravia e a certeza de que ela, a crítica, acertou na maioria das vezes que opinou, mas cometeu erros incompreensíveis. Hoje, é muito pouco provável que qualquer Anita de nosso tempo escape aos olhos da crítica ou do colecionador sensível.

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