É possível que literalmente todos os dias nasçam crianças com talento e potencial para ser um artista. Quase nunca ouvimos falar delas porque as dificuldades das suas vidas começam quando elas despertam seus interesses artísticos e a esmagadora maioria desses potenciais pintores, cantores, pianistas, poetas ou atores é castrada emocionalmente pelos próprios pais, que não compreendem o filho que têm ou não podem sustentar seu desejo, ou ainda por professores que os impedem de seguir com suas próprias pernas, obrigando-os a trilhar caminhos já percorridos por outros. Aí os rebentos se perdem ou se cansam dessa trajetória, deixando de cumprir o destino que os deuses lhes deram. Há ainda os professores que os castram por inconsciente inveja da juventude, beleza e talento do seu aluno. Ouvimos falar desses ex-futuros artistas quando, já adultos e impossibilitados de recuperarem o tempo perdido, lamentam não terem insistindo no seu próprio desejo.

Mas há exceções nessas assertivas. Uma delas chama-se Flávio de Carvalho (1899-1973), paulista nascido na cidade de Amparo da Barra Mansa (RJ) onde sua família ficou apenas por um ano. Assim, nosso herói é carioca por acaso, residindo sempre em São Paulo. Este articulista já comentou em texto anterior e publicado aqui neste Caderno, que talvez algum pesquisador descubra em longínquo futuro uma glândula ainda incógnita pela medicina, com a qual algumas pessoas nasçam e outros não. A glândula pode se chamar sorte. Com ela a vida fica mais fácil. Pois a sorte de Flávio de Carvalho começa com a riqueza dos pais que, podendo financeiramente e compreendendo o talento do filho, o envia para estudar em Paris aos doze anos de idade. Sua sorte continua quando, passando férias na Inglaterra, estoura a Primeira Grande Guerra e ele não consegue sair da Ilha. Por isso, ali permanece e aos dezenove anos inicia seus estudos de engenharia na Universidade de Durham e no curso de Belas Artes da Edward VII School. Volta ao Brasil em 1922, com vinte e três anos de idade e com o título de engenheiro, sem tempo para participar da célebre Semana daquele ano. Talento para isso não lhe faltava. Matemático, na engenharia fazia cálculos estruturais, mas sua paixão era a arquitetura e a pintura.

Como arquiteto, participou de vários concursos públicos com projetos para construção de grandes obras, desde o Viaduto do Chá na capital paulista, prédios da Universidade de Minas Gerais, hoje UFMG, até conjuntos de casas modernistas.

Flávio de Carvalho era um homem à frente do seu tempo com a vantagem de, aparentemente, estar sempre de bom humor. Não ser contemporâneo de si mesmo é sempre trágico para o artista, que não é compreendido e nem aceito, sentindo sua vida azeda em vários sentidos e se torna biografado mal humorado. Apesar de pouco compreendido nas suas pinturas iniciais, em todas as suas fotos registradas em livros sobre sua vida ou ao lado de algum colega de paleta, Flávio está sorrindo, sempre com cara de bon vivant, certo de que a vida lhe reservara o melhor do seu tempo, mesmo que incompreendido. Por isso mesmo, "aprontou" demais, produzindo, sempre que podia, o que ficou registrado em sua história de vida como escândalos. Alguns inimigos achavam que ele queria "aparecer", ser notícia, o que não é verdade. Nem ele precisava disso. Era pura gozação de um sujeito de bem com a vida. O primeiro e mais notório escândalo foi em 1931 quando ele realiza o que chamamos nos dias de hoje como performance e ele chamou de Experiência n. 2. Sua "experiência" consistiu em desrespeitar uma procissão de Corpus Christi. O que ele fez era algo quase infantil visto com os olhos de hoje. Na década de 1930 a igreja católica tinha prestígio infinito, se comparado aos dias de hoje e, durante a procissão, ele usou um boné verde e andou na contra mão dos fieis, despertando a ira dos fieis pelo desrespeitoso desafio do boné na cabeça e pela forma agressiva como andava entre o público. Na mesma hora, Flávio foi ameaçado de linchamento e preso pela polícia paulistana. Para contrariar e ainda chocar ainda mais o público, no mesmo ano, publica um livro sobre o acontecimento. Sua trajetória de enfant terrible continua quando cria o Teatro Experiência com o espetáculo Bailado do deus morto, fechado pela polícia. Era uma tentativa de expor nova forma de teatro desde o cenário, a dramatização, a dicção e a mímica até a observação dos sentimentos e emoção despertados no público pela nova experiência. Também não deu certo. Mais tarde, no dia 12 de julho de 1934 expõe sua bela pintura, mas a mostra também é fechada pela polícia, que apreende cinco quadros. Sua pintura expressionista com paleta cheia de cores e alguns nus sobre telas eram demais para o público paulistano da época. Se ele fosse menos corajoso e mais atento, teria aprendido com os fracassos de Lasar Segall e Anita Malfatti em anos anteriores e saberia que o modernismo não havia sido aceito no país e estava longe do que ele vira e aprendera do cubismo, do surrealismo, do expressionismo e do futurismo na Europa. Antonio Bento nos assegura em texto e como testemunha pessoal que o modernismo só seria aceito no Rio de Janeiro a partir de 1950.

Por ordem judicial, ele conseguiu reabrir aquela exposição alguns dias depois, mas o estrago já estava feito e não há registro de que tenha vendido algum quadro. Pessoalmente, tinha hábitos pouco ortodoxos para sua época. Em sua casa havia uma piscina e, uma vez por semana, ele erguia uma bandeira no alto do telhado. Seus amigos sabiam que ele passaria o dia nadando pelado e assim seria recebido quem viesse visitá-lo. Aliás, ele nadou nu em público em uma fonte na Praça Júlio Mesquita, em 1939, outra de suas gozações. Em 1956, tentou convencer os brasileiros que o Brasil é país tropical e que deveríamos usar roupas apropriadas para esse clima. Criou uma saia masculina, uma camisa solta no corpo, chamou o conjunto de New Look, desfilou com ele pelas ruas de São Paulo e foi notícia no Brasil inteiro, mas sua idéia não vingou.

O nosso fabuloso provocador era, sobretudo, um brilhante artista universal com suas pinturas, aquarelas e desenhos com aplicação das cores complementares que ele mais gostava: verde com vermelho, azul com laranja e assim produziu centenas de obras célebres, retratos expressionistas de seus amigos contemporâneos, vários autorretratos e muitas paisagens, que hoje estão espalhados por museus de São Paulo e Rio de Janeiro, além de importantes coleções particulares. Mas essas não eram as únicas cores de sua preferência. Como todo pintor brilhante, as suas obras são reconhecíveis à distância pelo estilo, as pinceladas grandes e seguras e pelas personalíssimas cores criadas por ele. Toda sua carreira de pintor é coerente e carregada de obras imortais desde a década de 1930, mas é naquelas de 1940/50 que seu brilhantismo jorra sobre as camadas de tinta nas telas ou em desenhos a carvão, deixando rastros indeléveis do quanto uma criança talentosa e de sorte pode se tornar um adulto imortal pelo que faz e exemplo para todos de seu país. O expressionismo de suas pinturas, em especial, as figuras humanas transmitem o seu sentimento de que, afinal nos anos 1950, ele havia sido aceito e compreendido. Esse humanismo pode ser visto no belo retrato de Jorge Amado, de 1945, posto em leilão no Rio de Janeiro para o dia 2 de julho, com lance inicial de dois milhões de reais. Se vendido, será um dos mais caro a ser pago por um retrato pintado a óleo no Brasil e a mais cara obra de Flávio de Carvalho. Perderá essa posição apenas para certos retratos de Tarsila do Amaral, Anita Malfatti e Candido Portinari. Nele, Jorge Amado está com 33 anos de idade e já era um nome importante da nossa literatura. O pintor tinha então 46 anos e estava no esplendor de seu expressionismo e segurança nos traços. O lote nº 62 pode ser visto no site WWW.soraiacals.com.br.

Seu brilho não é apenas financeiro e nem somente nos óleos; era também nos desenhos a nanquim, expondo seus mesmos traços inigualáveis, bem equilibrados por outros que faziam a composição nos atraírem pela segurança de quem conhece seu ofício. Suas aquarelas não eram menos importantes e nem menores do ponto de vista artístico. Aliás, como um Midas Moderno, tudo que traçava ou tocava, virava arte, desde seus projetos arquitetônicos à tentativa de criar uma roupa tropical, tentando modificar nossa forma européia de nos vestir. Flávio de Carvalho foi um artista de muitos ofícios durante seus setenta e quatro anos de vida. Ele só não foi alfaiate ou costureiro, mas, por certo, sabia lidar com as linhas.

 

(*) Psicanalista. Integra a ABCA e AICA.

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