Artistas, às vezes, são como bandidos: morrem cedo e tragicamente. Foi assim com o sempre lembrado Van Gogh. Toda a sua obra conhecida foi produzida entre os 27/37 anos de idade. Paul Gauguin, desde sempre, foi uma figura polêmica e atormentada. Morreu aos 55 anos, vítima da sífilis, o mal de seu tempo, num mundo de pura dor física. Suas obras foram todas executadas nos últimos 20 anos de vida. Modigliani morreu aos 36 por consumo abusivo de álcool e de drogas, angustiado com o mundo pela incompreensão de seus trabalhos. Toulouse-Lautrec desapareceu aos 37, vítima do absinto e da vida boêmia de Paris, além do infindável sofrimento pelo defeito físico. Jackson Pollock tinha 44 anos quando faleceu num acidente de carro, dirigindo bêbado e sofrido. Ninguém lhe dava menos que 65, tão envelhecido estava pelo alcoolismo. No Brasil, nosso mestre mais querido, Guignard, morreu aos 66; Portinari aos 59; Antonio Bandeira aos 45 e Ismael Nery aos 33. Raimundo de Oliveira aos 36. A lista é longa.

A primeira exposição brasileira com conteúdo expressionista foi realizada em São Paulo em 1914 pelo lituano Lazar Segall, então residente na Europa. Tornou-se brasileiro de coração, pincel e alma, quando voltou para aqui se fixar definitivamente. Depois dele foi a vez de Anita Malfatti, que em 1917 expõe sua bela pintura tentando antecipar o movimento modernista, que aconteceria somente cinco anos depois. Talentosa e jovem demais para sua época, foi incompreendida pelo grande público e, em particular, por Monteiro Lobato, um importante crítico, bravo e criativo escritor, homem cheio de virtudes nacionalistas e cujo único pecado em vida foi tê-la castrado e a demolido numa contundente crítica sempre lembrada e nunca perdoada. Depois daquela exposição, Anita voltaria somente em 1922 com suas idéias e apoiada pelo restante do grupo de intelectuais que ficou conhecido como os modernistas.

A Semana de Arte Moderna de 1922 não teve a repercussão esperada pelos seus participantes, seja em São Paulo, Rio ou no restante do Brasil. Ela foi a ruptura definitiva com o academicismo enraizado em museus, escolas, nas poucas galerias existentes e na cabeça da maioria dos artistas e intelectuais de então e, por isso, incompreendida pelo grande público e pelo público especializado. Pouquíssimos intelectuais entenderam a grandeza dos acontecimentos de 1922 em São Paulo. Um destes é de particular interesse histórico pela coragem de, em 1924, dois anos depois da exposição modernista e cuja ressonância ainda não tinha chegado ao Rio de Janeiro, expor sua indignação em plena Academia Brasileira de Letras: o embaixador Graça Aranha. Naquele ano ele fez um veemente discurso a favor dos modernistas, se declarando horrorizado com seus contemporâneos, cegos e insistentes em não aceitar a novidade que chegara para ficar. Seu discurso repercutiu no Brasil mais que a Semana de 22. Quem não soube desta, a descobriu através do tal discurso. Somente a partir dele os modernistas iniciaram uma trajetória que poderia ter começado com Anita Malfatti, anos antes. Mas a resistência era grande. Vários integrantes da Escola de Paris expuseram no Rio, no Hotel Palace, em 1930, oito anos depois da famosa Semana, e aqui ficaram apenas dez dias por puro desinteresse do público. Antonio Bento assegura no seu livro Ismael Nery (São Paulo: Gráficos Brunier,1973, p.24) “que de 1920 a 1950 os modernos eram aqui [no Rio] repudiados e combatidos”.

Entre os modernistas do Rio havia Ismael Nery, paraense de nascimento e carioca de coração, cujo interesse histórico é registrado este ano (2004), 70 depois de sua morte ocorrida em abril de 1934, pela maldição de que foi portador em vida como pintor e pelo talento hoje reconhecido. Maldito porque incompreendido, combatido e depreciado por todos, inclusive por alguns colegas modernistas; foi valorizado apenas por seus amigos e admiradores: Murilo Mendes, Antonio Bento, Graça Aranha e Joaquim Burlamaqui. Defendendo-o antes e depois de sua morte, esses mosqueteiros do príncipe pictórico mal sabiam que levaria dezenas de anos para o Brasil compreender Ismael, aceitá-lo, amá-lo e valorizá-lo como um dos mais importantes pintores do país. Até mesmo Oswald de Andrade, um paulista brilhante e interessado em nossa cultura, não reconhecia seu talento, alegando que ele “era uma invenção do Murilo e do Antonio Bento”, afirmativa comprovadora que os gênios também se enganam, em especial, quando se referem aos seus próprios pares. Talvez a mútua genialidade tenha sido a qualidade impeditiva de Oswald o ver, fato lamentado pelo próprio Ismael em seu “Testamento Espiritual” quando falava a todos: “a minha excessiva proximidade impediu, porém, que me olhásseis como realmente sou”. Proximidade que Oswald tinha também com relação ao nosso país. Por isso, admitiu e reconheceu que precisou se distanciar do Brasil para descobrir a nossa cultura apenas em Paris. Pena que, de lá, não tenha visto também a grandeza de Ismael. Para contrapor, havia Mário Pedrosa que, aqui, o chamou de “príncipe do espírito”.

Conta a lenda que Adalgisa e Ismael voltavam de uma festa e, ao se preparem para dormir, ele a viu se despindo e, ali mesmo no quarto, pintou o mais belo quadro da pintura brasileira, segundo achava o crítico de arte Carlos von Schmidt. O quadro é perfeito do ponto de vista de equilíbrio e cores, ritmo e tensão, uma incompreendida obra-prima do seu tempo. Adalgisa não foi somente sua musa principal com quem ele dividia as conversas com amigos intelectuais freqüentadores de sua casa no Rio. Ela foi a mãe de seus dois filhos e a bela poeta por cuja cultura, sensibilidade e inteligência os modernistas eram apaixonados. Ele, além de arquiteto, pintor, desenhista, aquarelista, um artista completo, foi um eloqüente conversador. Foi também escritor apaixonante pela ousadia de se expor nos seus textos e poemas além de pintor que revelou sua intimidade nos autorretratos ainda pouco estudados. Ismael sabia que a arte é a tentativa de revelar as atividades da alma humana, por isso, seus autorretratos mostram o que ele queria dizer e não conseguia e aquilo que ele dizia e sentia não ser compreendido, daí sua preferência pela escola expressionista quando se retratava. Em ambas as situações o resultado nas telas é o reflexo de sua angústia interior causada pelos conflitos pessoais, agravados pela sua incompreensão artística. Pintou pouco e escreveu menos ainda, mas tudo o que pintou e escreveu se eternizou. Seus textos são sofridos poemas autobiográficos de alguém profetizando a brevidade da sua existência, um indecifrável e misterioso recado do que se passava dentro de sua alma. Ismael criou também um conjunto de idéias filosóficas sistematizadas, nunca escritas, que ele chamava de essencialismo, considerado por ele mesmo uma introdução ao catolicismo que praticava.

Seus trabalhos nasciam no toque mágico de poesia pictórica daquela escola alemã, sua fase mais vigorosa cheia de sentimento e lirismo; passam para o expressionismo-cubista, excluindo tudo o que havia de frieza, racionalismo e ausência de emoção do cubismo analítico e terminam no surrealismo, lugar do insólito, do acaso, do automatismo psíquico, do real e do fantástico juntos, todos colocados em sua produção que não excede a pouco mais de trezentos quadros a óleo e centenas de desenhos e aquarelas. Sua obra tem a presença constante da figura humana, demonstradora de seu humanismo que se estendia até na sua aceitação de não ser compreendido. Nestas obras é comum vermos homens e mulheres de pescoços alongados, sensuais e líricos, com freqüência fundidos, como se ambos fossem uma só pessoa, presos no tempo.

usão demonstrada e desejada também em versos como “Eu sou o marido e a mulher” do poema Eu. Mais que isso, Ismael lamentava por nele existir “tantas almas num só corpo”. Almas que foram envelhecendo junto com o corpo doente, outrora elegante e belo, consumido pela tuberculose pulmonar nos últimos anos de vida. Nestes passava o dia desenhando e jogando fora seus trabalhos. Dezenas deles e vários óleos foram literalmente salvos por encomenda de Murilo Mendes, um equivalente de Théo Van Gogh na vida do pintor, pela enfermeira do hospital onde ele permaneceu desenhando, escrevendo e se definhando. Ela literalmente os retirava do lixo e os entregava a Murilo Mendes. A maioria desses desenhos, hoje tão valorizados, são estudos de quadros que ele pretendia executar. A decadência física foi se agravando no aparecimento de um tumor na laringe que o impedia de ser o brilhante conversador de antes. Se tivesse vivido mais, teria produzido o suficiente para ser o mais internacional dos pintores brasileiros.

Ele deveu sua formação à mãe que fez todo o sacrifício necessário para levar o filho para Paris com a finalidade de completar seus estudos de pintura. Enviuvando em 1909, ela vestiu-se de freira e declarou-se “Irmã Verônica”. Mais tarde, quando Ismael adoeceu e ela percebeu que perderia o filho amado, vivia transitando descabela pela casa, de hábito e crucifixo nas mãos, atormentando a todos e implorando a Deus o milagre de sua salvação, brigando com a família e bradando rezas e aforismos católicos, misturados com crenças mediúnicas com os quais ela imaginava exorcizar os demônios que julgava externos a si.“Ela me construiu e ela me destruiu” dizia Ismael sobre essa helênica Medéia pós-moderna quando o modernismo ainda engatinhava.

Sua morte ocorreu aos 33 anos de idade, a mesma do seu pai “e a mesma de Cristo” como ele afirmava que seria seu fim. Seu esquecimento entre nós perdurou até 1965 quando a 8ª Bienal de São Paulo o homenageou colocando vários quadros de sua fase surrealista em exposição. Estes quadros e mais outros formaram a retrospectiva realizada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro no ano seguinte. A partir daí Ismael Nery é reconhecido como um dos mais importantes pintores brasileiros e o céu passa a ser o limite dos preços de suas obras, registrando um recorde em 1972. Neste ano foi vendido o quadro “Autorretrato com o Pão de Açúcar”, uma obra prima na qual o artista se pinta entre a Torre Eiffel de Paris e o Rio, suas apaixonantes cidades, numa composição de clara influência do seu amigo Chagall. Se o valor da venda desse quadro em moeda estrangeira fosse corrigido hoje, seria superado apenas pelo “Abapuru” de Tarsila do Amaral no mercado brasileiro, tão raras são as ofertas para venda de suas obras em poder de particulares ou em leilão.

Ismael lamentava a proximidade que nos impedia de vê-lo como ele realmente era. Mas não foi somente esta a prejudicá-lo. Ele teve o azar de viver numa época em que era incompreendido em tudo que fazia ou pensava, fenômeno também ocorrido com El Grego, Manet, Van Gogh, Gauguin, Anita, Guignard e tantos outros. O artista precisa ser contemporâneo de si mesmo, caso contrário corre o risco de morrer ignorado e desvalorizado. Tísico numa época em que essa doença matava aos poucos, o artista era uma angústia só desde sua volta de Paris em 1927 “onde esperava ficar para sempre”. Não conseguiu. A partir de 1930 contraiu a doença que, em três anos, o levaria para mais perto de Deus.

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