Em março de 1937 a Espanha estava politicamente dividida pela Guerra Civil, iniciada um ano antes pelo General Franco, que tentava derrubar o governo republicano legitimamente eleito. Os espanhóis desta facção, envolvidos com a esquerda, dominavam todo o lado ocidental do país, desde Girona, na Catalunha, até Almería, no sul, e parte do interior. Os nacionalistas, favoráveis ao golpista General Franco, detinham todo o restante oriental do país, exceto a província de Biscaia. Ela, localizada no norte e parte da terra dos bascos, estava isolada das forças republicanas que a apoiavam. Seus habitantes até hoje têm interesse em se separarem da Espanha e formarem o independente País Basco. Usos, costumes, língua e cultura próprias não lhes faltam na pretensão. A província era republicana e, naquelas circunstâncias históricas, uma região cercada pelos franquistas, que procuravam dominar o que faltava do norte. Para isso eles fariam, com a maciça colaboração da aviação militar nazista, a então mais impensável carnificina humana no culto país de Cervantes.

A tragédia ocorreu no dia 26 de abril de 1937, numa segunda feira, por volta das 17 horas de um dia tranqüilo de primavera européia e com a praça do mercado de Guernica cheia de agricultores. Naquele ano, os aviões no ar não eram tão comuns como hoje. Apesar disso, os habitantes do interior europeu já não os viam com surpresa sobrevoando as cidades. Mas naquele dia, naquele horário, circunstâncias históricas e a visão de vários deles voando baixo demais faziam um conjunto a prenunciar ataque. A indefesa cidade de Guernica começa a ser bombardeada pela Legião Condor de Hitler. Ela fica em chamas. Há pânico e muita correria, atitude inútil para 40% da população, morta ou gravemente ferida. O que ocorreu lá e então é como se aqui e agora morressem seiscentos mil belorizontinos ou milhões de paulistanos ou cariocas, massacrados por três horas de ininterrupto bombardeio. O fato, por ter ocorrido antes dos horrores da Segunda Guerra Mundial, quando cenas dessa natureza passaram a ser banais e quase diárias, tornou-se emblemático. Com Franco a humanidade ratificou o que já aprendera na I Guerra Mundial: matar pode ser como algumas atividades capitalistas: por atacado Não houve um único ser pensante, exceto os franquistas, que não tivesse tido horror do episódio e não o condenasse. A repercussão foi tão ruim que os nacionalistas negaram o ataque e, durante meses, o atribuíram aos próprios bascos republicanos, alegando que estes procuravam inspirar indignações e aumentar a resistência do povo. A confirmação do ataque pelos nacionalistas ocorreu apenas em outubro de 1937.

Picasso morava em Paris desde 1900 e não se interessava pela política até julho de 1936, assegura o historiador e jornalista inglês Thomas Hugh, quando se engajou na causa republicana espanhola e na esquerda. No dia 1º de maio o artista espanhol recebeu a notícia de Guernica arrasada, ainda em chamas, e a sua população dizimada. Esta data é o Dia do Trabalho na maioria dos paises então vivendo em regime de esquerda ou com tendências a ela. Naquele dia, durante as comemorações parisienses, os manifestantes aproveitaram para protestar contra Franco, Hitler e a Luftwafe pelo crime cometido. Picasso sai do meio da multidão e se dirige para o seu atelier.
O ataque a Guernica mudou o pintor espanhol, e de sua indignação fez surgir uma das mais importantes obras-primas da pintura mundial, um emblema premonitório da violência que havia sido e ainda seria o século 20. A inspiração para iniciar o mural veio do ódio, do medo, da empatia e do entendimento da dimensão cainita que o homem tem para lidar com o seu semelhante. Picasso começa naquele dia a esboçar uma homenagem à cidade em chamas e a seus habitantes, heróis e vítimas da violência nazi-fascista. Desse esboço nasceria também um registro pictórico eterno contra qualquer tirania.

“Guernica”, tela de 7,6 x 3,5 m, de Pablo Diego José Francisco de Paula Juan Nepomuceno Cipriano de la Santíssima Trindad Ruiz Picasso, faz 73 anos. Ela foi exposta pela primeira vez no pavilhão da Espanha Republicana na Feira Internacional de Paris naquele ano e ocupa o lugar mais importante entre as pinturas do século 20. É um clássico no sentido literal: uma peça que permite sucessivas leituras, atravessando e desafiando gerações de espectadores. Há milhares de textos publicados sobre o trabalho, com os seus autores tentando desvendar claros mistérios contidos nos seus intrigantes elementos. O painel é uma esfinge moderna que não nos devora como fazia aquela de Tebas, mas emite recados humanos, políticos, simbólicos e artísticos para gerações futuras como nenhuma obra do século 20 fez.

“Guernica” foi pintada com o reconhecimento da impotência do pintor e, por extensão, dos republicanos da cidade que, defronte de dois violentos ditadores nazi-fascistas, foram atacados e viram arrasada a sua desprotegida aldeia e massacrados os seus habitantes. Os dois tiranos cobravam dívidas do momento, acrescidas daquelas de séculos de “teimosos” bascos, insistentes nas suas cultura e língua. O mural expõe a mesma impotência vivida pelos habitantes da pequena cidade. Ele foi criado e existe como se fosse envolto num manto fantasmagórico dos seus angustiados moradores e dos seus mortos, perceptível pelo espectador possuidor do mesmo e comovente humanismo que motivou Picasso. Quem reconhece a pintura também como uma escrita, o painel é de leitura difícil como são aquelas subjacentes narrativas literárias. Ou se ama ou se odeia, mas ninguém o ignora. Para quem o ama, ele é explicado pelos fantasmas dos mortos da cidade que, guias internos no coração do espectador, ratificam e esclarecem as suas metáforas. Aos que o odeiam, os mesmos fantasmas cobrem-no com suas capas sombrias a impedir a visão do que ele tem de belo e aumentam a insensibilidade desses espectadores para que se mantenham longe dele. O painel é dirigido ao gênero humano e transmite esperança. É também fruto da mistura de amor às vítimas e de ódio ao inimigo, de indignação, horror, medo, empatia e da compreensão interna percebida pelo artista espanhol da dificuldade que o homem tem para lidar com o seu semelhante e, por isso, paradoxalmente cheio de humanismo. Ele é o registro ainda mais emblemático que o próprio ataque nazi-fascista à pequena aldeia, a impedir que a carnificina seja esquecida. É o momento em que o artista espanhol se envolve na sublimação freudiana e, na genial solidão, cria novo mensageiro de sua imortalidade.

Guernica é, antes de tudo, uma manifestação profética do que o homem do século 20, com sua ciência e a sua tecnologia, produziria nos anos seguintes: os mais devastadores artefatos de guerra e as piores idéias totalitárias, de direita e de esquerda. Guernica foi uma amostra, uma miniatura, a “entrada” do banquete totêmico do que seria servido depois, em Pearl Harbour, Londres, Stalingrado, nos campos de concentração nazistas, Dresden, Hiroshima, Nagasaki e finalmente em Berlim, todos matando por atacado.

O painel é “iluminado” por uma lâmpada num dos pontos de fuga do quadro: ela representa o conhecimento, a ciência e tudo que se faz em nome dela e com a sua dupla capacidade criadora e mortífera. É ela, a ciência, a única a fornecer a luz e a compreender a sua própria importância e ter esperanças de ser mais bem aproveitada pelos homens. Esperança e luz reservadas para a humanidade, não para gáudio de qualquer tirano de plantão. Por essa razão, o atemporal mural não tem qualquer símbolo político explícito: suástica, sigma, saudação nazista ou qualquer outro que lembrasse um partido político ou uma ideologia. Apesar dessas ausências o mural foi, é e será eternamente político e a sua leitura subjacente é o primitivismo que surge no homem quando se raspa a fina camada de verniz cultural, seja ele habitante do país de Goethe, de Shakespeare, de Tolstoi, de Proust ou de Hermingway.

“Guernica” traz também uma paradoxal dupla mensagem: é a representação do mais sórdido pesadelo humano e é um ícone ao humanismo. As suas frestas cheias de expectativas, como aquelas nas quais o artista faz nascer uma flor entre a mão e a espada, simbólico da nobreza e retidão e uma outra no candeeiro pronto para iluminar a lâmpada, são demonstrações de esperanças e crença que o homem pode ser melhor. Em outro detalhe, pinta a letra Alfa na orelha do touro e a Omega nas suas ventas, a informar que o começo, a circulação e o fim de tudo estão dentro de nós. No painel há a mistura de todo o alfabeto, a formar um texto de uma tragédia grega vivida pela Espanha, descrevendo atos indizíveis por palavras.

Como toda obra-prima, não há no mural qualquer elemento que chame a atenção de forma especial, mas há nele quatro figuras emblemáticas, além da lâmpada. A primeira é um imóvel e impassível touro, símbolo da baixeza, da brutalidade, do fascismo, do General Franco e seus golpistas. Ele é também o Id freudiano, postulado do psicanalista vienense, no qual impera a natureza primitiva e avassaladora do gênero humano, e que, na pintura, contempla, impassível, seus filhos espanhóis sendo massacrados ao longo de sua história grandiosa, dolorosa e trágica. É impossível não se indignar defronte de tanta inclemência afetiva no touro. A segunda figura, o cavalo agonizante, é a representação do povo espanhol, dos maridos ou irmãos mortos, todos perplexos e impotentes ante a violência dos ataques à cidade pacata, indefesa e sem importância militar. E o envolvimento pátrio-familiar continua na terceira figura: a mãe pintada abaixo daquele impassível touro, chorando com o filho morto no colo, a implorar por misericórdia. É a Pietá pós-moderna, avant la lettre, quando o cubismo já era história. E a quarta é o homem que, desesperado, levanta os braços aos céus, tentando segurar as bombas contra Guernica; o mesmo homem que hoje tenta segurar aquelas em Jerusalém e Bagdá ou as balas perdidas do Rio. Picasso foi o guerrilheiro urbano que, sem dar um único tiro na guerra civil, será sempre o incansável guerreiro imortal que, falecido há anos, continua combatendo qualquer tirania.

Picasso queria o seu Guernica a cores. Foi Henri Matisse quem o convenceu a pintá-lo como uma sinfonia monocromática. Matisse tinha razão: assim como não é possível colher flores em campos de batalha, não cabem cores em mural com dimensão trágica como Guernica.

 

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