Não conheci Alberto da Veiga Guignard pessoalmente. Por isso, não estive presente na sua vida de pintor e artista e nem na sua morte em 26 de junho de 1962, mas parte de sua biografia é conhecida por todos os interessados como eu e nela há hiatos sempre tão cheios de mistérios quanto seus quadros. Aqueles pessoais estão arquivados na memória de cidades como Munique, Florença e Paris até 1929 e é melhor que continuem nelas, sem interessado ou curioso para desvendá-los. Mistérios pessoais devem fazer parte das biografias de divindades. Os pictóricos estão nos seus quadros executados como celebrações de merecida vida imortal, obras com temas inesgotáveis pelo conteúdo, forma, ritmo, composição, beleza, talento e a Vila Rica de sempre.

 Aos 33 anos de idade Guignard chegou ao Rio de Janeiro, desta vez para ficar definitivamente no Brasil. Na antiga Capital Federal, o pintor se surpreende com a ausência de artistas modernos, exceto o jovem Ismael Nery, o único portador de pintura digna de figurar em qualquer salão em Paris, a mesma Paris que já considerava o cubismo escola superada.

Antes de sua chegada ao país, o Brasil tinha começado o movimento modernista com exposições de Lasar Segall, em 1913, e Anita Malfatti, em 1917, seguidas da Semana de Arte Moderna de 1922, todas realizadas em São Paulo. Mas esta teve pouca repercussão pelo Brasil afora e terminaria naqueles dias se não fosse o célebre discurso de Graça Aranha na Academia Brasileira de Letras, dois anos depois, repercutindo mais que o próprio acontecimento. Dele participaram Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Brecheret, J. Graz, Villa-Lobos e outros artistas que horrorizaram o mundo acadêmico de então. Graça Aranha, embaixador, escritor, intelectual brilhante é hoje muito mais que nome de rua famosa no Rio de Janeiro. Com sua fala definitiva, Graça Aranha tentou retirar a Alice que era o Brasil de dentro de um espelho acadêmico, despertando o mundo intelectual brasileiro para algo que viria para ficar e que pouquíssimos brasileiros haviam percebido. Metaforicamente, foi uma espécie de personagem literário que chega para esclarecer e explicar a trama ou a grandiosidade de certos acontecimentos descritos por autor de um romance cheio de personagens conflituosos. Infelizmente para Graça Aranha e para os brasileiros em geral, o nosso país somente aceitaria o Modernismo a partir de 1950 e o abstracionismo em 1953, na célebre exposição do Hotel Quitandinha em Petrópolis.

Guignard não participou da famosa Semana paulista e é possível que tenha tomado conhecimento dela somente em 1924, quando esteve no Brasil quase que de passagem. Um ano antes, uma certa Ana Döring, sensível musicista com bela voz, havia cometido a temeridade de se casar com o jovem pintor que tinha lábio leporino, era fanhoso e, para ela, com insuportável falta de sonoridade nas quatro línguas nas quais ele era fluente. Provavelmente ela aceitou sua proposta de casamento porque viu nele atributos tão raros hoje quanto então: amor, generosidade, altruísmo e um coração a bombear beleza nas telas. Mas, essas eram compensações insuportáveis para quem tinha a música como desejo e ouvidos tão delicados quantos as criações pictóricas do marido. O decorrer de poucos meses de casamento provou que as qualidades de Guignard eram compensações pequenas para resistir à sensibilidade auditiva de Ana e a sua provável falta de amor, além de ela se sentir constrangida ao vê-lo se alimentar em casa ou em público. Se a falta de sonoridade na voz de Guignard foi o primeiro martírio da jovem esposa, o defeito congênito foi a maior das tragédias pessoais de Guignard. Conta a lenda que Ana o abandonou em plena lua de mel. Se de fato isso ocorreu, quando ele chegou de passagem ao Brasil em 1924 já estava abandonado pela sua eterna paixão. Mas o abandono dela não foi suficiente para destruir o seu talento ou impedi-lo de participar do Salão Nacional de Belas Artes daquele ano com cinco desenhos e um auto-retrato em pastel. Nele recebeu a Menção Honrosa de 2º grau. Se Ana provocou no nosso pintor a ferida narcísica de marido abandonado, Guignard teve a recompensa e o belo reconhecimento neste prêmio, sobretudo se considerarmos a atmosfera acadêmica ainda reinante no Rio de Janeiro e no Brasil em geral, acrescida da resistência de qualquer júri de aceitar a nova arte que já era história na Europa. Em 1924 o impressionismo francês, o expressionismo alemão, o cubismo de Picasso e Braque, o Surrealismo de De Chirico e Salvador Dali já eram mais que conhecidos e algumas dessas escolas já estavam superadas por novas idéias, técnicas e conteúdos pictóricos.

Quem conheceu Guignard pessoalmente em Belo Horizonte ou Ouro Preto, seja como aluno, seja como fornecedor de moradia ou refeições em troca dos então desvalorizados quadros, seja como amigo do peito, todos são unânimes em afirmar que “Guignard era uma criança”. Talvez, do pescoço pra cima, nunca tenha deixado de ser. Vivia como se a criança feliz de Nova Friburgo de antes da morte do pai ainda existisse dentro dele e daquela infância ele nunca tivesse saído, nem mesmo para perguntar se o adulto que ele era fosse também o artista que a criança desejou ser. Suas lembranças felizes ao lado dos pais naquela cidade fluminense estão literalmente refletidas nos seus quadros cheios de balões de festa de São João, algo que seu pai fazia todo ano e deixava o menino encantado pela beleza das cores e transparência das luzes nas leves peças. Leveza e transparências que, nunca esquecidas, foram transpostas décadas depois para suas telas nas paisagens de Ouro Preto, a exibir a neblina de Vila Rica entre casas e igrejas como se estas flutuassem no espaço mágico ou ainda nas flores colocadas nas roupas das modelos dos retratos de amigas ou naqueles de encomenda.

A chegada de Guignard a Minas a partir de 1944 é um marco intelectual tão grande a favorecer Belo Horizonte, quanto é desfavorável, alguns anos depois, a partida de Fernando Sabino e seus amigos Hélio Pellegrino, Otto Lara Rezende e Paulo Mendes Campos, com encontro marcado no Rio. Guignard veio porque havia o convite do prefeito e depois governador JK com o seu apoio oficial para criar uma escola em Belo Horizonte, que trouxesse os ares modernistas de si mesmo, somados àqueles de colegas de paleta cariocas, paulistas, florentinos e parisienses. Os escritores, os quatro cavaleiros do apocalipse, partiram porque sentiram que a cidade era pequena demais para seus talentos literários e psicanalítico. Guignard acertou quando aceitou o convite: foi valorizado como professor pelas alunas que o adoravam e por alunos que o respeitavam. Colaborando com o crescimento da cidade, Guignard trouxe ainda Franz Weissmann, desenhista, escultor e professor não menos talentoso que o seu anfitrião, deixando ambos marca em alunos que fariam o orgulho dos dois professores.

Assim como Graça Aranha é muito mais que nome de rua do Rio, Guignard é muito mais que professor de alunos talentosos. Ele deu a contribuição definitiva para mudar o pensamento pictórico da jovem cidade e deixou de herança um acervo de pinturas que encantam pela leveza dos traços, o ritmo da composição, a beleza das cores no registro de “cidades imaginárias”, como as chamou Lélia Coelho Frota, pintando a mesma cidade de Ouro Preto ou Sabará, mas com o lirismo que se espera de um poeta. Guignard encantou-se pela luz de Vila Rica, a mesma que pode ser vista num dia de sol de inverno, refletida pelas montanhas que a cercam a funcionar como um rebatedor fotográfico. Com técnica pictórica aprimorada, transpôs para as telas a transparência da neblina entre igrejas, casas e serranias, comprovando que gênio é aquele que enxerga o óbvio. Guignard pintou a beleza de cenas de cidades existentes há mais de 250 anos então e que ninguém havia visto e registrado como ele. Ou ninguém viu o que ele tão bem viu e pintou, nem mesmo em fotografias de então, ou, se alguém viu, não teve talento para fazer da cena o poema que ele criou. Por estes motivos sempre que escrevo algo sobre Guignard, tenho o sentimento de falar de alguém de minha intimidade pessoal, alguém que, se existe um mundo eterno depois deste, por certo será o local no qual nos encontraremos e seremos amigos e onde, parafraseando Alvaro Moreyra no seu poema “Projeto”, vou chamá-lo de “Betinho” e ele há de me chamar “Carlinhos”.

 

Últimos artigos do Carlos Perktold