O que faz uma pintura de autoria do artista brasileiro consagrado pela história, cuja assinatura está ou não no suporte, ser autêntica? O que há nela que faz o colecionador, museu, galeria ou outra instituição acreditar que, comprando-a ou aceitando-a como doação, recebe algo feito pelas mãos do pintor e é de fonte confiável? Se ele está vivo, aparentemente, bastaria consultá-lo. Mas a produção da maioria deles é grande, o tempo passou, a memória na velhice não é mais tão generosa quanto na juventude e, com frequência, o próprio artista comete desatinos de não atribuir a si obra oriunda de seu cavalete, prejudicando o colecionador. Penitencia-se posteriormente, como já presenciei em várias ocasiões, com mútuos constrangimentos e pedidos de desculpas. Como no samba, “não dou exemplos pra não dar o que falar”.

Se o artista já faleceu, a resposta a essa questão tão delicada começa pela percepção da beleza do quadro, sempre subjetiva, vista por aquele conhecedor da trajetória do autor ou pelo interessado que, de olhos treinados e sensibilidade desenvolvida, vê nele algo raro que mexe com seus sentimentos. A raridade da beleza faz aquela peça diferente e especial, porque ela expõe o que é bom e o espectador sente que ela oferece resistência e claros mistérios aos sucessivos olhares. É o que deve ter sentido o comprador de um quadro de Picasso, oferecido num antiquário no meio do deserto do estado do Arizona, Estados Unidos, durante cinco anos sem que qualquer pessoa se interessasse por ele. Não havia assinatura e a pintura deve ter parecido a todos que a viram anteriormente como um inútil objeto decorativo. Depois daqueles anos, alguém ofereceu duzentos e cinqüenta dólares e o vendedor aceitou. Quem o vendeu para o antiquário não sabia o que tinha, este não sabia o que comprava e continuou ignorando o que o comprador viu, despertando seu interesse. Levado à Fundação Picasso foi autenticado e vendido por cinco milhões de dólares. São coisas que ainda acontecem pelo mundo afora. Parabéns para o comprador, por que, quem pensaria num Picasso autêntico no deserto do Arizona?

Nem é somente Picasso a oferecer beleza despercebida ao mundo em locais desertos ou não. Há centenas de pintores com produção de excepcional qualidade e que estão abandonados pelos porões de casas e castelos. Os primeiros dezenove quadros descobertos duzentos anos após a morte de Vermeer (1632-1675) estavam amontoados num porão de uma velha mansão de Amsterdã, esquecidos e sem que o mundo de então suspeitasse sequer de sua existência como artista. Sabe-se que ele pintou apenas quarenta quadros. Trinta e nove estão em museus ou em pinacotecas particulares. Há, portanto, um valioso Vermeer perdido no mundo. Notícia do Estado de Minas, edição de 3 de dezembro passado, p.19, informa que o Museu Rembrandthuis da mesma e surpreendente Amsterdã, reconhece como autêntico, 342 anos após a morte de Rembrandt, um pequeno retrato de 185 x 170 mm do mais importante pintor europeu da história, até então atribuída a um possível discípulo. Por quantas gerações de mãos especializadas, colecionadores, leilões e ofertas pessoais esse quadro passou despercebido como um autêntico Rembrandt? Neste período, ninguém a jogou fora. Quando a peça é boa, ninguém se desfaz dela.

A resposta da questão citada na primeira linha desta matéria é a beleza da composição, percebida por alguns privilegiados, um conjunto de formas, identificadas cores criadas pelo próprio artista ao longo dos anos, fases que se transformaram em trajetória na qual, em um determinado momento histórico e biográfico, ele é consagrado. No Brasil e a partir do Modernismo, é o caminho do artista que, habitualmente, começa no figurativo e segue por anos até a sua simplificação e termina ou não no abstracionismo, de tal forma que é possível identificar no aqui e agora de um trabalho recente, uma síntese do início de sua carreira. O princípio é válido, mesmo para quadros considerados ruins de bons pintores. Apesar de “ruim”, há detalhes, pinceladas, composição, ritmo e talento expostos que não deixam dúvidas de sua autenticidade.

A segunda resposta é a assinatura do artista, o que, também com frequência, oferece dificuldades porque vários deles assinavam de várias formas diferentes. Dos pintores brasileiros conhecidos, Vicente do Rego Monteiro tinha oito assinaturas; Guignard e Di Cavalcanti umas quatro ou cinco; Ismael Nery tinha sete, registradas em uma de suas obras publicada na p. 11 do livro de Antonio Bento [Ismael Nery, Brunner, SP, 1973], outra não assinalada ali, além do seu conciso e monumental monograma. Mas, por certo, a assinatura é importante, tem características que, se necessário, grafólogo apontará ao examiná-la. Além disso, o quadro pode não ter assinatura e ser de pintor identificável de longa distância. Exemplo: há em conhecida coleção mineira um óleo sobre tela de Portinari sem assinatura. O artista esteve com ele na mão na própria casa do colecionador e este pediu àquele para assiná-lo. Portinari respondeu “Pra quê? Todo mundo sabe que é meu só de olhar”. É verdade, mas o artista morre, a obra fica e há gerações de herdeiros se sucedendo que não sabem do ocorrido naquela noite, fato que os prejudicará no futuro. O quadro nesse caso foi reconhecido e está catalogado no Projeto Portinari.

Outro detalhe importante é sua procedência ou sua provenance, no jargão de marchand. O ideal é que tenha havido um registro ou sucessivos recibos desde a sua retirada do cavalete do pintor e se saiba a cadeia de seus vendedores/compradores. Mas o mercado de arte brasileiro é muito recente e, em passado muito próximo, ninguém imaginava que hoje haveria quadros que deveriam ter escritura pública em cartório de notas para ser vendido de uma pinacoteca para outra, tamanha é a sua importância, fama e alto preço. Na época de sua venda inicial ninguém o valorizava comercialmente e jamais imaginaria que, no futuro, seriam necessários recibos com firma reconhecida, declarações juramentadas, exame de DNA, CPF, fotos e vídeo do artista pintando o quadro e impressão digital nele, para provar sua autenticidade, tamanhas são as exigências de alguns compradores. É fundamental notar no mercado de arte que, antes, como agora, para que um quadro seja vendido caro no futuro é preciso que ele tenha sido comprado barato no passado. Algum leitor já viu um recibo assinado pelo próprio pintor de venda à pessoa física de alguma obra de Guignard, Di Cavalcanti, Portinari, Pancetti ou do nosso saudoso Inimá? Se há, são pouquíssimos e as pessoas físicas os conservam como documento histórico, as jurídicas como documento contábil. Raramente são passados para o novo comprador.

Na pergunta quem comprou de quem, há elos desfeitos por falecimentos, desinteresse, desconhecimento do valor do que têm, herdeiros inimigos que, por imposição legal, recebem suas heranças com alegria e as vendem imediatamente como vingança e desaparecem na biografia do artista, quebrando alguns registros. Que fique claro ao colecionador iniciante: é impossível exigir da esmagadora maioria de colecionadores ou marchands a cadeia completa de vendedores/compradores de milhares de quadros de pintores brasileiros datados de antes de 1980 até o atual proprietário. Ninguém se preocupava com isso durante décadas e muitos dos quadros valiosos hoje eram baratos ontem. Pedro Paulo Cava, marchand há anos, ofereceu obras de Iberê Camargo da célebre série Carretéis, caríssimas hoje, em leilão no Teatro Marília em Belo Horizonte, logo após o incidente que transformou o artista em notícia das páginas policiais. Os preços eram quase de graça. Ninguém os comprou, inclusive este arrependido articulista. Guignard trocava hospedagem e até alimentação por quadros em Belo Horizonte, Ouro Preto e em Nova Friburgo. Quem os recebeu neste escambo informal jamais imaginou que um dia eles seriam tão valiosos e o futuro comprador exigiria recibo de venda. Qual venda, se houve apenas escambo? Alguns donos de pensão nas quais Guignard se hospedou, chegaram a recusá-los como pagamento, exigindo dinheiro do velho mestre. Não havia mercado e ninguém valorizava a arte brasileira como hoje.

Como última resposta à pergunta inicial e não menos importante: é a técnica utilizada pelo artista. Esta é o mesmo que estilo do escritor ou do compositor: uma mistura de talento, virtuosidade, equilíbrio, ritmo, tensão, sintaxe reconhecível ao primeiro olhar. É o mesmo que qualquer literato faz na leitura de poema ou do primeiro parágrafo de escritor consagrado; os músicos aos primeiros acordes da composição. Alguns artistas pintam diretamente sobre o suporte, outros fazem estudos em forma de desenho ou aquarela sobre papel, papeis que ratificam a obra definitiva. Há rascunhos arquivados sem assinatura, mas com clara identificação do seu autor, arquivados por ele mesmo e que ajudam nas pesquisas. Mas, tal como achar um documento de 1930, assinado com caneta esferográfica é o mais claro sinal de crime de falsidade ideológica porque ela ainda não havia sido inventada, encontrar uma tela de Guignard pintada com tinta acrílica ou sobre eucatex é a mais completa impossibilidade. Ele jamais usou esse suporte e essa tinta. Imagino que até 1962, ano de seu falecimento, poucos pintores brasileiros sabiam da existência dela e não a usavam com a frequência de hoje.

Atualmente colecionadores e marchands estão tendo dificuldades com familiares de pintores já falecidos e que, em certos casos, parecem terem vendido suas almas para o diabo, autenticando apenas o que lhes interessa ou é proveniente dos grandes marchands. Atribuir aos familiares poder e conhecimento da obra do artista apenas pelos laços sanguineos é temerário. Há familiares de pintores que nunca se interessaram pela obra do parente até que entendessem que ele, a longo prazo, produziu dinheiro. Como no passado os artistas não pensavam no vil metal e sabiam da dificuldade de vender um quadro, muitos familiares desinteressaram-se pelos seus trabalhos e desconhecem suas diferentes fases e são incapazes de reconhecer seus quadros. Por isso, é possível faltar-lhes conhecimentos para declarar ou não a autoria da peça. Claro que há exceções e há quadros que foram vistos centenas de vezes na casa do artista e que o familiar não tem dúvida sobre sua autenticidade. E, por certo, há parentes que sabem tudo do artista morto.

Com muitos pintores brasileiros, o preço dos seus trabalhos valorizou tanto e a autenticidade se tornou tão necessária, que foram criados projetos a fim de que as obras fossem registradas e recebessem certificados. Estes sempre valorizam o óleo, a aquarela, o desenho ou a escultura pela certeza de sua autenticidade, porque foram examinados por especialistas, conhecedores da obra do artista, químicos, grafólogos e engrandecem os herdeiros que publicam os catálogos raisonées. São exemplos os projetos: Portinari, Anita Malfatti, Mabe, Arcângelo Ianelli, Iberê Camargo, Inimá, Guignard, no CECOR da UFMG, Clóvis Graciano, Tarsila, Goeldi, Amílcar de Castro e outros.

Recente desabafo do marchand Vitor Braga, publicado no catálogo de leilão realizado no final de novembro de 2011, traz texto no qual o galerista se indigna contra um grupo de amigos e especialistas das obras do pintor Alfredo Volpi, um dos mais brilhantes de sua geração. Volpi começa a despontar como artista internacional com peça vendida em New York na Casa Cristie´s, em novembro desse ano por US$ 842 mil. Além do aspecto artístico, o interesse comercial sobre suas obras desponta com a força de um elefante em disparada. A indignação do marchand origina-se do fato de que o lote n. 100 do seu leilão foi considerado por volpistas credenciados pelo próprio Volpi como “proveniente do seu ateliê”, despertando suspeita de que não foi executado pelas mãos de pintor. Em e-mail antes do leilão, os mesmos especialistas garantiram sua autenticidade. Além disso, o quadro foi comprado do próprio pintor, o que já o torna inquestionável, está assinado, tem a sua técnica e o seu conteúdo é Volpi puro como um brilhante. Que fique claro: os especialistas e amigos do pintor não são interesseiros em prejudicar negócios em leilão algum. Pelo contrário. São interessados em preservar o que é efetivamente dele, porque as falsificações já começam a aparecer na mesma medida de sua valorização.

(*) Carlos Perktold é psicanalista. Integra a ABCA, AICA e o Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.

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