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A UNESCO acaba de declarar como patrimônio cultural da humanidade o conjunto arquitetônico da Pampulha, em Belo Horizonte. Não é a primeira vez que reconhecimento dessa natureza vem para Minas Gerais pela mesma instituição. As cidades de Ouro Preto, Diamantina e a eterna beleza de Congonhas e suas esculturas de Aleijadinho já haviam sido premiadas com essa mesma manifestação. A diferença e a novidade de agora é que se trata de um conjunto composto de prédios arquitetônicos de arte moderna, aquela cuja extraordinária formosura fala por si mesma. E como é eloquente a adolescente clássica de mais de 70 anos, que não envelheceu e nem envelhecerá nunca. Esta é a maior qualidade das obras primas artísticas de qualquer natureza: tornar-se um clássico, algo que passa por várias gerações e é sempre louvado pela beleza, graciosidade, leveza, ritmo e linhas.

Corria a década de 1940 e o prefeito Juscelino Kubitschek convoca alguns artistas, despontando no Rio de Janeiro, para projetar um novo bairro na Capital mineira e, nele, deveria ter um conjunto arquitetônico que chamasse a atenção do Brasil sobre nossa cidade, naquela década ainda pequena para os padrões populacionais do Rio de Janeiro e de São Paulo, um eixo que permanece até hoje. Entre os artistas estavam Oscar Niemeyer, Roberto Burle Marx, Candido Portinari, Alfredo Ceschiatti, Paulo Werneck e José Pedrosa, este mineiro de Rio Acima, cidade próxima de Belo Horizonte. Esse grupo de homens brilhantes com idade em torno de 30 anos faria o mais lindo conjunto arquitetônico, paisagístico, pictórico e escultural de nossa jovem Capital. Conta a lenda que o apressado prefeito pediu ao arquiteto que fizesse o esboço do conjunto rapidamente. Niemeyer foi para o hotel onde se hospedara e na manhã seguinte, para surpresa de todos, mas, sobretudo do prefeito, mostrou o rascunho dos projetos que lhe havia ocorrido naquela noite. JK se apaixonou na hora pelas rampas, ao invés de escadas no prédio do antigo casino e que hoje é o Museu de Arte da Pampulha-MAP. Apaixonou-se ainda pelas linhas curvas da igreja dedicada à devoção do pai de JK, São Francisco de Assis, pela Casa do Baile com sua construção lembrando os rios de Minas. Não se tinha notícia até então de uma igreja naquele formato arquitetônico. Isso significava que, se o poeta e engenheiro calculista, Joaquim Cardoso, compreendesse a dimensão do projeto, se convencesse da viabilidade dos projetos e fizesse os cálculos de tal forma que pudessem ser executados, seria a primeira vez na história da humanidade que haveria uma construção em concreto armado em curva. Nenhum dos envolvidos nos projetos pensava em posteridade naquela ocasião e, menos ainda em vê-los transformados em patrimônio cultural da humanidade. Mas quando se junta pessoas interessadas em inovar e criar coisas que não envelhecem, o resultado é sempre algo que os transformam em mensageiros da eternidade, mesmo que não pensem nela. Sem que nenhum dos envolvidos no desejo do prefeito sequer imaginasse, nascia ali também e com a mesma equipe um embrião do que seria a nova capital do Brasil, quando o prefeito, em 1955, se tornasse presidente do país e cumprisse a adormecida promessa de interiorizar nosso desenvolvimento por intermédio da construção de Brasília, o novo Distrito Federal.

As curvas sempre foram a paixão do então jovem arquiteto, sejam aquelas das montanhas de Minas e dos nossos rios, sejam aquelas da mulher amada, como ele gostava de dizer. O importante para ele é que seus projetos tivessem movimento, ocupando um espaço como se fosse uma escultura. E eles são esculturas magistrais, tão importantes que a melhor peça do hoje Museu de Arte da Pampulha, o antigo Casino, se tornou a melhor peça do seu acervo. Esculturas aqui não é somente o MAP e a famosa igrejinha, mas da Casa do Baile, do Iate Tênis Clube e da casa do prefeito, todos construídos às margens da lagoa.
Mas o leitor não imagina que a igrejinha, tão linda, com as magistrais pinturas interiores e exteriores de Portinari e baixos relevos de Ceschiatti tenham sido aceitas pela Igreja católica de imediato. Pelo contrário. O arcebispo de Belo Horizonte na ocasião, D. Antônio dos Santos Cabral desdenhou a bela construção e não a aceitou como parte da sua diocese por que ela havia “sido construída e projetada por comunistas”. Estes, no caso, eram Oscar Niemeyer e Candido Portinari muito especialmente. Prontas em 1944, somente em 1956 o novo bispo da diocese, D. João Rezende Costa, a consagrou, passando então ali a serem celebrados os sacramentos da igreja católica. Hoje ela é considerada uma capela de uma paróquia e sua administração é conduzida por um capelão da igreja.

O painel defronte ao altar é o mais puro modernismo brasileiro, representado por São Francisco pregando para os animais e com grandes pés que surpreenderam toda a população da cidade. A explicação do pintor na ocasião, para liquidar logo o assunto e não ter que dar aula sobre modernismo para o grande público, foi “por que ele andava muito”, e enormes mãos, “por que ele era generoso” , além da via sacra em óleo, outra obra prima que fala por si mesma e deixa qualquer espectador encantado pelos traços seguros e a beleza modernista.

A escultura “Pampulha”, colocada defronte do Casino é criação de José Pedrosa, exímio desenhista como deve ser todo escultor, que imortalizou sua criação. É a sua única peça do artista no conjunto, colocada na entrada do prédio, chamando a atenção dos pedestres sobre a beleza do lugar. Além dele como escultor, Alfredo Ceschiatti brilhou nos baixos relevos do batistério da igreja com bronzes revelando Adão e Eva no paraíso. E por falar em paraíso, palavra persa que significa um jardim, o paisagista, pintor, desenhista e retratista Roberto Burle Marx foi chamado para fazer os jardins do conjunto. Isso compreendia os paisagismos da Igreja, do Iate e, sobretudo, aquele do Casino, o mais visível. O resultado na época foi uma joia tão importante quanto aquelas lapidadas pelo arquiteto. Desses jardins muito pouco resta, exceto os desenhos originais, jardins que a prefeitura promete restaurar na sua plenitude. Tanto melhor.

Houve ainda grande colaboração de Paulo Werneck na confecção dos azulejos colocados na Casa do Baile e no Iate Tênis Clube. Este, infelizmente, foi crescendo à medida que o clube invadia e grilava centenas de metros quadrados da lagoa e construía, com permissão ou omissão de autoridades municipais, novos prédios que não têm a menor pertinência com a arquitetura de Oscar Niemeyer. Os novos projetos deixaram Niemeyer aborrecido demais e, aos olhos deste articulista, fica a pergunta por que alguém com a mesma atividade profissional do brilhante arquiteto ousou projetar algo tão diferente em estilo do primeiro conjunto. O que o novo e infeliz arquiteto, numa metáfora, foi dar sua colaboração a um poema acabado de Carlos Drummond de Andrade ou ainda modificar um texto de Guimarães Rosa, achando que poderia “enriquecê-lo” com suas linhas retas e ângulos agudos. O resultado foi a mais completa falsidade que agora, felizmente para a cidade, deverá ser demolido e os espaços grilados, devolvidos à lagoa.

Para azar do clube, de seus associados e da nossa cidade, essas “colaborações” são construções que a cada dez anos envelhecem cinquenta, envergonhando-se da eterna adolescente ao seu lado.

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