A imagem do cientista trabalhando em laboratório é sempre de alguém com cabelos brancos em desalinho, atento aos detalhes críticos, anotados com cuidado, os olhos focados nos aparelhos e nos tubos de ensaio; sempre surpreso quando chega alguém com um cafezinho. a idéia do pintor acadêmico ficou imortalizada em algumas telas, nas quais ele é mostrado, ao lado de um cavalete, de avental, pincel na mão e boina na cabeça. No mundo globalizado de hoje onde tudo é, de preferência, do gênero fast-food, ninguém tem o modelo idealizado de como é um pintor contemporâneo. Por isso, se o leitor, conhecedor de seus trabalhos ou se encontrar com Miguel Gontijo na rua, vai se surpreender com a sua simplicidade pessoal em contraste com a grandiosidade e a beleza de suas pinturas, aquarelas, desenhos e objetos. Suas obras são impactantes pelo conteúdo, retratando desde monges medievais em atenta leitura, anjos barrocos e cândidos Agnus Dei até galináceos e ditadores ao lado de uma bela figura grotesca sentada numa poltrona de príncipe ou até mesmo mãos portando dois modernos revólveres, itens de composição a formar conjunto harmonioso, equilibrado e atual.

O suporte dessas obras pode ser a tradicional tela horizontal ou vertical, mas, com freqüência, são círculos de madeira, totalmente preenchidos pelos elementos da composição em cores elaboradas. Preferindo ser chamado de desenhista, coloca a tela sobre a mesa e a pinta como se fosse um desenho, raramente usa o cavalete. Dos pintores brasileiros, Miguel Gontijo tem e Iberê Camargo teve a ousadia de colocar com precisão a difícil cor preta. Antes deles, Edouard Manet também sabia o que fazia com ela. Como se percebe, nosso artista está bem acompanhado. O espectador se surpreenderá ainda com a qualidade das intencionais apropriações de grandes mestres, o que ele faz com precisão, atividade já conhecida como art about art. Não é surpresa encontrar em seus trabalhos “lembranças” de Mondrian, Picasso, Rembrant, Ingres ou Almeida Júnior. Todos colocados na tela através de colagem ou como releitura dos grandes mestres.

Se perguntado a respeito, Miguel Gontijo se mostrará despreocupado quanto à classificação de seus trabalhos nesta ou naquela escola, algo inútil se o resultado é talento e beleza. Mas para quem considera isso importante, pode-se afirmar que o surrealismo está presente em suas obras em cenas e personagens que um dia já existiram em países ditos civilizados, assim como elementos de cubismo. Suas obras são também satíricas, mordazes, cáusticas e, acima de tudo isto, há a presença do barroco. Este é representado nas linhas curvas, nos conteúdos literalmente fantásticos dos elementos da composição e na simetria, tão própria daquele estilo. O Barroco, como se sabe, foi também uma forma de o Homem se colocar frente ao mundo, sendo comuns, nesse período, espetáculos públicos dominicais dos mais grotescos e desumanos. O novo capitalismo, chamado neoliberalismo, não chega ao absurdo de expor esse atributo cainita em praça pública, mas como ele é essencial a sua existência, Miguel Gontijo a captura nos seus quadros e, como se eles fossem um imenso espelho, refletem e denunciam aquilo que falta na teoria e na prática econômicas que exclui o humanismo, raison d´être de nossa existência.

Conhecedor de técnica de desenho, pintura e aquarela e da história da arte em particular, Miguel Contijo brilha em cada trabalho executado, seja de pequeno ou de grande porte. Com freqüência, passa pela arte contemporânea criando objetos polêmicos e de grande beleza. Este segmento, como o leitor já percebeu em galerias, museus e leilões, é a arte mais fácil de ser malfeita. Tal como outros grandes mestres mineiros, como Bracher, Inimá ou Guignard, ele nunca se ligou a modismos, ficando sempre fiel a si mesmo. Na solidão, local e ocasião próprios da criatividade, apura seus trabalhos, vendidos no Brasil e no exterior, prova de que o mineiro de Santo Antônio do Monte tem uma universal visão de mundo. Miguel introduz autorretratos nos seus quadros ora com o rosto contemporâneo, ora com as feições de um ser medieval. Em qualquer das duas circunstâncias registra sua passagem na própria obra, como fazia o velho Hitchcock em cenas rápidas nos filmes que dirigiu. Os dois têm nas emoções a demonstração de vida e beleza.

Nosso artista não descobriu cedo sua vocação de aquarelista e pintor. Miguel Ângelo Gontijo, não sem motivo seu nome completo, passou antes pelos vários caminhos que, inconscientemente, percorremos antes de chegarmos ao nosso derradeiro destino: uma estação pessoal chamada Desejo. Este é o local onde o mundo para e descemos com a certeza de termos encontrado “a estrela inalcançável” de que falava seu xará Cervantes. Encontramos esta estrela depois de buscas que incluem lutas internas e externas, conflitos e angústias e muita garra. Gontijo, antes de ser o artista que é, procurou por outras estrelas. Um semestre na escola de Medicina foi o suficiente para assegurar-lhe que não era essa sua seara. Hoje lamenta sua escolha. Acha que a vida de médico seria mais fácil num país onde se valorizam tão pouco seus artistas. Passou pela informática e acabou graduando-se em História pela UFMG em 1977. Foi professor secundarista desta matéria durante anos. Em 1967, se o leitor tem idade para se lembrar desse tempo, a ditadura de plantão achava que a linguagem mais adequada para falar com a categoria estudantil era do policial montado à cavalo com cassetete na mão. Miguel era um jovem recém chegado do interior e, passante num momento em que a polícia “dialogava” com um grupo de estudantes na avenida Afonso Pena, foi encurralado dentro da igreja São José em Belo Horizonte. Foi preso por três longos dias e fichado como “agitador”. Para quem o via, o aposto chegava a ser risível, razão pela qual foi solto sem explicação e sem que ninguém intercedesse por ele. Este foi seu primeiro trauma na cidade grande onde não conhecia ninguém.

O segundo ocorreria anos depois e estava relacionado com sua atividade profissional, agora como a de pintor. Artista talentoso e com obras lindíssimas, mas pouco conhecido pelo grande público, aceitou proposta de certa marchande para expor 40 quadros na sua galeria em 1981. Sucesso absoluto de público e de venda... para a galerista. Para nosso artista foi o desastre completo porque até hoje ele espera o acerto de contas. Generalizando a desonestidade da marchande, ele se afastou de galerias e exposições por mais de vinte anos. Voltou a exibir seus trabalhos outra vez por insistência de Beatriz Abi-Acl, da Galeria Agnus Dei de Belo Horizonte.

Miguel Gontijo afirma que “pintei apenas um quadro na vida...”, declaração que este articulista completa para “...com variações infinitas sobre o mesmo tema”, como se ele fosse um compositor exclusivo de sinfonias. Comete ainda o desatino de comentar que “não sou bom desenhista nem bom pintor, atuo nas duas áreas para uma esconder a incompletude da outra”. Modéstia do primeiro mineiro a ganhar o prêmio do II Salão Nacional de Artes Plásticas da FUNARTE, no longínquo ano de 1979 com uma aquarela de transcendente beleza, competindo com os maiores artistas do país, quadro hoje pertencente ao acervo da instituição.

Miguel Gontijo tem a paradoxal vantagem de ser visto sempre por um público especializado e apaixonado pelo que ele faz e a desvantagem de não ser ainda bastante conhecido do grande público. Se o leitor faz parte do grupo que o desconhece, procure conhecer suas obras e se encantará com a raridade e beleza do seu universo pictórico.

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