Noite destas, tendo adormecido pensando em pintores, músicos e escritores talentosos, sonhei com uma revoada de anjos barrocos que, em jogral e em poema póstumo de Drummond, explicavam o critério de Deus para entregar para alguém aquilo que o inglês chama de gift of God: o talento. O poema era lindo; a explicação, de simplicidade franciscana e, resumidamente, ocorre assim: em um determinado momento de uma medida de tempo que desconhecemos, em uma das suas tarefas cotidianas, o Todo-Poderoso aponta para um sortudo nascituro e uma luz de matiz divina acende em um departamento celestial. Naquele momento, todos os integrantes do jogral sabem que um potencial gênio nasceu, mas nenhum deles sabe a que o rebento foi destinado. Isso fica armazenado num lugar dentro do presenteado que apenas Ele conhece. Se aquele é contemporâneo de si mesmo, nasceu em família que compreendeu seu destino e tem condições de auxiliá-lo a seguir suas desventuras, o tempo lhe mostrará o significado daquela luz e ele será imortal no que fará. Como vêem, os talentosos precisam de outras ajudas, além daquela de Deus. Daí, a explicação por que há tantos Mozart, Bach, Manet e Cézanne que jamais serão conhecidos nem terão a sorte destes. Esta talvez seja uma glândula congênita, ainda desconhecida da Medicina e, no futuro, os cientistas explicarão por que apenas alguns nascem com ela.  Conta a lenda que, quando Sergio Telles nasceu, duas luzes se acederam no Paraíso: elas representavam a vida artística e a diplomática (nesta ordem), dois talentos ímpares do guerreiro da vida.

O imaginário nacional fantasia que a vida dos habitantes do Itamaraty seja tudo o que pediram a Deus: verba disponível para gastar à vontade, lugares lindos para morar, carro com placa CD autorizando estacionar onde quiser, tempo para ler e escrever longas cartas, ou melhor, e-mails, chofer particular e, acima de tudo, muito glamour à noite, regado a bons vinhos e nenhum trabalho burocrático, político ou comercial. Tudo, é claro, com muita elegância dentro do circuito Londres, Paris e New York.  Alguns abençoados do Itamaraty trabalham e recebem essas benesses, mas é importante lembrar que o Brasil tem várias embaixadas em lugares onde o tédio passa férias e o diabo tem residência fixa. E vários diplomatas estão lá neste momento, desmentindo aquele imaginário.

Por certo, as duas estrela-guias de Sergio Telles serviram de bússola orientadora e ele brilhou no Rio de Janeiro e em locais tão encantadores e privilegiados, que se pôs a pintá-los. E aquelas luzes celestiais, acessas quando ele nasceu, foram se intensificando pela sua vida afora e ele, generoso, as transferiu para suas telas. Daí a beleza de suas telas. Mas que ninguém imagine ser essa atividade um lazer na época da vida na qual podemos nos dar ao luxo de ócio com dignidade. Sua trajetória de artista é tão anterior àquela de diplomata que, aos dezoito anos de idade, era contemplado com o Prêmio de Viagem ao País pela Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Ser premiado com essa idade, por certo, é o resultado de garra, determinação. Por isso, se ele não tivesse seguido carrière e pelo talento de que é possuidor, continuaria sendo quem é há muito: um artista de primeira linha, que não cede a modismos pós-modernos, elaborando a arte do desenho, aquarela e pintura como ele acredita, conhece e sabe.

O espectador despreparado pode se surpreender com a simplicidade enganosa, própria de grandes artistas, e imaginar que o que está na tela é atividade fácil: bastam algumas pinceladas bem marcadas e cheias de cores na tela. Ser simples é atividade que requer árduo exercício intelectual e é privilégio de poucos. Matisse, em célebre carta de 14 de fevereiro de 1948 e dirigida a Henry Clifford, diretor do Museu de Arte da Filadélfia, demonstrou toda preocupação que a sua monumental retrospectiva poderia causar nos jovens artistas que viriam seus trabalhos e os imaginariam simples demais, sem calcularem o custo emocional deles. Dizia Matisse: Como interpretarão eles a impressão de aparente facilidade que lhes produzirá uma visão geral e rápida e até mesmo superficial, de minhas pinturas e desenhos? Havia então na pergunta do mestre francês e há hoje entre o grande público, o risco de imaginar o resultado com simplicidade como algo de fácil feitura. Com os trabalhos de Manet, Monet, Duffy, Cézanne e dos nossos Guignard, Ianelli, Marcier, Vicente do Rego, Gomide, Sergio Telles e outros privilegiados pintores brasileiros, corre-se o mesmo risco e permanece o mesmo e velho receio de Matisse.

Este grupo de artistas nacionais e estrangeiros, depois de longas guerrilhas interpessoais, criou obras que se apresentam como se fossem suas próprias impressões digitais, reconhecidas de longe a olho nu, tão grande é a unidade dos trabalhos de cada um. Para chegar a esse resultado, é preciso fazer como Sergio Telles fez: descobrir cedo o significado daquela luz divina, desenhar intensa e literalmente todos os dias, freqüentar escolas e ter professores do porte de Oswaldo Teixeira, Levino Fanzeres, Rodolfo Chamberlland, Gagarin ou Nivouliès de Pierrefort, todos craques no desenho e no pincel. Estes, com altruísmo, repassaram seus conhecimentos ao aluno, que se tornou mais importante que seus mestres. É essa a função do aprendiz: ser, no futuro, melhor que seus lentes. Aqueles professores e a freqüência na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro foram dois dos elementos de uma constelação que cresceu no país e no exterior e que enobreceram o pintor-diplomata. Freqüentar aquela Escola durante alguns anos era a certeza de aprender a técnica apurada do desenho, do uso e mistura das cores, criadora de imagens com ritmo, tensão e cuidado com o elemento que se pinta no ponto de fuga da composição. São marinhas, naturezas-mortas e paisagens de lugares onde Sergio Telles morou e que foram fixadas em aquarela, desenhos e óleos com unidade ímpar: Paris, Lisboa, Líbano, Itália, Rio de Janeiro ou de cidades históricas mineiras. Nestas telas o espectador sentirá o amarelo da laranja madura, o azul do céu de Brasília, o ocre de difícil colocação e a luminosidade de uma ensolarada Ouro Preto, todas acompanhadas do mistério que toda boa pintura deve conter, da mesma forma como há texto subjacente em cada obra literária de qualidade. Cabe ao espectador decifrá-lo, porque a pintura é também uma escrita. E em sendo, alguns pintores são comparados a alguns escritores: poucos escrevem poemas avassaladores.

Não são apenas esses atributos que imprimem aos trabalhos de Sergio Telles a grandeza que têm: são raras as suas obras nas quais o ser humano está ausente, detalhe crítico demonstrador de seu humanismo. São personagens literários com vitalidade pictórica e cheia de movimentos, sugeridos com delicadas pinceladas como faziam os impressionistas, ratificadas por Duffy e confirmadas pelo nosso Guignard.

O espectador ou o colecionador experiente se certificará de todas essas afirmativas se folhear apenas um dos vinte e dois livros editados sobre suas obras, ou ler os textos sobre seus trabalhos, todos de críticos exigentes. O neófito em pintura e que  tiver a sorte de encontrar seus quadros numa exposição, terá a vantagem de começar vendo um clássico.

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