Para entender Eugène Henri Paul Gauguin (1848-1903) cujo centenário de morte ocorre neste ano, é preciso nos remeter aos  seus ancestrais que vinham dos Borgia, incluíam papas e a envenenadora Lucrécia, passavam pelo tio-avô, vice-rei do Peru quando este pertencia à Espanha e chegavam até sua avó, Flora Tristan, uma mulher ímpar para o seu tempo. Ela se casou com André Chazal contra a vontade dos pais dele. Ele era gravador e ela o julgava um artista de futuro. Quando descobriu nele um homem de dotes pessoais limitados e sem ambições de grande artista, ela o abandonou, grávida de Aline, futura mãe de Gauguin. Sua biografia, a partir de seu divórcio, é tão fascinante quanto aquela do neto artista, pelo conteúdo de atividades pessoais, políticas, intelectuais e exemplo de garra e de determinação numa época em que as mulheres nem imaginavam um movimento chamado feminismo. Ativista política, viveu episódios cuja ousadia forjou-lhe um caráter que a transformou na primeira feminista francesa. Pensadora e socialista, antes de Karl Marx publicar O Manifesto Comunista, ela escreveu Sindicato de Operários em 1843 com as primeiras idéias revolucionárias de que aquele deveria oferecer creches, escolas e ambulatórios para os operários associados. David Sweetmann, biógrafo de Gauguin, afirma que parte das idéias de Karl Marx, contida no seu manifesto publicado cinco anos depois, tinha passagens inspiradas no texto dela. 

Anos depois de sua separação, ela teve ódio do ex-marido quando André tentou uma relação incestuosa com Aline, atitude pela qual ela tentou levá-lo aos tribunais franceses. Não conseguiu. Conseguiu posteriormente quando ele lhe deu um tiro na tentativa frustrada de assassiná-la. Ela sobreviveu ao grave ferimento, fortaleceu-se perante a massa de operários que já a adoravam e ficou livre do ex-marido para sempre, condenado a dezoito anos de trabalhos forçados. Mãe e filha odiavam o pai que só se livrou da prisão com o compromisso de não se aproximar mais das duas.

 Quando Paul Gauguin nasceu em 1848 herdou os acervos genético e modelar de sociopatia de um eixo condutor biográfico familiar que começava nos seus ancestrais, passava pelos avós e pais, circulava pelo tio-avô e terminava nele, devedor final perante a vida do débito de várias gerações, integradas por membros arrogantes, onipotentes e sem limites. Herdou também os créditos representados pelo talento, inteligência, garra, determinação e brilhantismo. Por isso, é impossível falar de Gauguin e de sua obra sem se referir ao seu caráter, sua loucura e sua sexualidade que, de marido fiel durante anos, terminou na mais descarada e pública preferência pedofílica, morrendo sifilítico, com dores horríveis, enlouquecido com os primeiros sintomas da paralisia geral progressiva e abandonado pelas esposas adolescentes conquistadas no Taiti. 

Algumas famílias parecem possuir uma maldição de repetições psicopatológicas ao longo de gerações, de tal forma que se compreende a personalidade do neto quando se conhece a biografia do avô ou outro antepassado próximo.  Gauguin não é diferente. Ele repetiu o seu avô André no sentimento que tinha pela própria filha, também Aline, que recebia preferência paternal a beirar o incesto. Do ponto de vista, psicanalítico é possível que a escolha sexual dele por adolescentes, manifestando-se aos 39 anos de idade na Martinica, seja a realização deste desejo incestuoso nunca realizado. É também o resultado da presença de tantas mulheres fálicas na sua árvore genealógica que ajudou a produzir um conflito cujo resultado é esta aparente insegurança sexual. A própria escolha de Mette Sophie Gad como sua mulher e mãe de seus cinco filhos comprova a busca de alguém identificada àquelas de seus antepassados. Mette foi uma linda dinamarquesa insensível e perdulária que, depois de divorciada, foi se masculinizando e, no final da vida, vivia vestida de homem, fumando longos charutos, hábitos femininos inusitados para sua época. 

O pai de Gauguin, Clóvis, morreu aos 31 anos de idade, de ataque cardíaco fulminante, quando viajava para o Peru. Ele e sua mulher Aline estavam à procura de herança deixada pelo tio dela e, viúva no caminho, continuou viagem com o filho Paul, então com dezoito meses de idade, até o Peru onde permaneceu por seis anos. Este país foi uma influência permanente na vida, na pintura e, em especial, nas cerâmicas de Gauguin. Ele era orgulhoso deste seu passado e, quando alguém lhe perguntava porque tinha o nariz tão grande, dizia que era herança genética dos astecas e dos maias, mencionando sua infância e familiares peruanos. Na realidade foi o resultado de uma briga na qual ele levou a pior. Gauguin misturava suas fantasias e falácias, nas quais acreditava, com uma realidade que ele manipulava. Estas atitudes o transformaram no primeiro pintor marqueteiro moderno e numa lenda muito antes de sua morte. Falava espanhol sem sotaque, aprendido quando criança, o que facilitou a sua vida durante breve passagem como mensageiro entre revolucionários espanhóis refugiados na França. 

Tão logo sua mãe voltou para Paris, uniu-se a Gustave Arosa. Este havia se enriquecido operando na Bolsa de Valores de Paris. Sua fortuna cresceu ainda mais quando seu pai se matou, transformando-o num milionário. Gustave foi a pessoa mais importante na vida de Paul, afirmação com a qual este jamais concordaria. Seu atribulado conflito com o amante da mãe ia da dívida pelo emprego que teve durante anos na corretora e na companhia de seguros das quais Gustave era sócio, à forma gentil como tratou a irmã de Gauguin como filha, e a empréstimos em dinheiro nunca devolvidos, além de tê-lo apresentando a todos os pintores impressionistas de quem era amigo e mecenas. Tudo isso terminou com Arosa sendo odiado pelo enteado que lhe devia tanto e de quem tinha sido tutor. Gauguin não compareceu ao seu funeral e nem à missa do sétimo dia.

Não foi essa a sua única atitude incompreensível aos olhos de uma pessoa comum. Gauguin foi amigo do peito de Pizzarro, seu primeiro mestre e de quem se afastou por muito tempo. Shuffenecker foi um pintor menor, mas um amigo certo nas horas mais incertas e a quem Gauguin e Mette sempre recorriam quando em apuros financeiros ou quando precisavam de um abrigo em Paris. Essa amizade que não foi impedimento para Gauguin o trair com a sua mulher, também fálica, arrogante, insensível e que gostava de humilhar o marido. Ela tinha todos os detalhes críticos "femininos"  construtores de  imagem especular  idêntica àquela de seus ancestrais e que tanto o seduziam. Paul Gauguin quando se descobre artista evidencia-se como um sujeito fascinante no trato pessoal mas inconfiável sob qualquer ponto de vista. Van Gogh o adorava, sentimento unilateral. Se tivesse sido recíproco, é possível que Vicent se sentisse mais amparado e vivido mais, tão grande era a importância do francês para o holandês.

A grande virada de Gauguin como pintor de pequenos esboços de fim de semana para o artista brilhante ocorreu quando ele já tinha sido abandonado por Mette. Antes de isso acontecer e para evitar a desagregação familiar, ele foi atrás dela em Copenhagen, cidade que ele detestava porque não falava a língua local, não gostava dos familiares da mulher que o viam como péssimo marido e pai e porque não tinha a atividade intelectual de Paris. Lá, ele ficou algum tempo trabalhando como representante de fabricante francês de lona. Foi a época que teve menos dinheiro e mais dependeu da mulher e da família dela, situação que foi se agravando na mesma proporção que ele aumentava sua dedicação à pintura. Nessa ocasião, viveu pressionado pela família, pelas intrigas da cunhada moralista e ainda aturava os alunos de francês da mulher que falavam mal dele e riam de sua pintura. 

Quando ele decide voltar para Paris em l884, com o filho Clovis, mesmo nome de seu pai, estava cheio de ódio de tudo que tinha vivido na detestada Dinamarca. Preferiu passar fome, frio e vergonha em Paris por não oferecer à família o que ele já tinha feito no passado, a permanecer em Copenhagen suportando as humilhações da mulher e de sua família. Em Paris, além da pobreza, sentiu-se num impasse artístico por não querer  pintar paisagens e arredores de Paris feitas ad nausem pelos seus colegas de paleta.  

Gauguin pensava, queria e buscava uma pintura com novo conteúdo. Sua oportunidade, imaginou, seria ir para o Panamá onde uma empresa francesa tentava abrir o canal unindo os dois oceanos. Havia nele uma idéia romântica sobre a América, fantasiando que, tão logo lá chegasse, arranjaria um bem-pago emprego num banco e que teria tempo para pintar aquilo que, a seus olhos, era um novo mundo exótico. Tudo deu errado no Panamá: a empresa francesa estava à beira da falência e havia muita malária e hepatite. Sem emprego, com pouquíssimo dinheiro, doente e acompanhado de seu amigo e pintor Laval, saiu daquele país e desembarcou na Martinica onde os dois ficaram pouco mais de seis meses. Ali, ele pintou doze quadros, quantidade irrisória comparada ao que é capaz de produzir um pintor nosso contemporâneo. Mas, no meio destes doze, estava o Entre as Mangueira ou Apanhador de Mangas de 1887, criado com estilo próprio, uma obra-prima marcante e definitiva, com o novo conteúdo que ele buscava, novas forma, cor, tensão e luz que marcariam a sua pintura para sempre, ratificado depois com A visão depois do sermão: Jacó lutando com o anjo de 1888, um marco divisório do artista que estava à procura de um caminho e que,  encontrando-o,  não o perdeu mais, imortalizando-se nele. 

Sua personalidade teve alterações significativas depois de sua permanência na Martinica. Ali, ele descobriu um mundo de liberdade, sobretudo sexual, encantando-se com a beleza das martinicanas cuja cor da pele ia da negra à mais linda mulata com traços fisionômicos da raça branca, resultado da miscigenação que ele nunca havia visto ou imaginado. Tudo isto temperado com um glamour selvagem que ele desconhecia e o enfeitiçou.  É aqui que surgem dois Gauguins: o artista definitivo e o marido e pai que, apesar de amar sua família, abandona-a para dedicar a sua vida, de forma exclusiva, ao seu desejo.

Ele fica ainda em Paris quase três anos e, antes de partir para a Polinésia francesa, em especial o Taiti, com o dinheiro arrecadado num leilão de suas obras organizado por novos admiradores e  amigos, decide visitar a família que não via há seis anos. Foi recebido com respeito, mas também com distância, pela mulher que vivia bem mantendo os cinco filhos como professora de francês e tradutora de Zola. Dos cinco, apenas Aline falava francês e foi a única a recebê-lo com afeição. Todo o apartamento de Mette era decorado com a pinacoteca que Gauguin havia deixado e que adquirira no início de sua carreira de pintor e incluia Pizzarro e Cézanne, além de vários dele. Despediram-se uma semana depois de sua chegada e nenhum deles poderia imaginar que não veria mais o pai. Gauguin foi para o Taiti no dia 24 de março de 1891. É, portanto, falsa a difundida informação de que ele era um homem bem-casado e um bem-sucedido corretor da Bolsa de Valores de Paris quando decidiu abandonar o emprego, a mulher, os filhos e os amigos e ir para a Polinésia por amor a sua arte. Taiti foi, antes de tudo, um lance de marketing, de realização do seu desejo e cujo preço foi muita angústia e sofrimento, mas ratificou a lenda de "ruivo selvagem", como ele gostava de ser chamado.

Do Taiti, ele perdia o controle de venda de sua produção enviada a Paris e administrada por um marchand chamado Charles Morice que não lhe remetia o dinheiro de seus quadros. Paul Gauguin volta à França dois anos depois de sua partida, trazendo 66 telas, total armazenado por falta de compradores locais, 42 das quais formaram o acervo de uma exposição com a qual ele esperava arrasar Paris e ser reconhecido sobretudo pelos colegas consagrados. É dela o polêmico quadro Manao Tupapau (1892), uma tentativa de superar em beleza e em escândalo o Olympia de Manet.  Nele, Gauguin retrata uma garota de treze anos, nua, deitada de bruços com olhar constrangido. No canto superior esquerdo do quadro, há um fantasma da mitologia local. O sentimento que a modelo transmite é de medo do pintor porque ela sabe que o artista sabe que ele é o fantasma dela, por isso o olhar dela é para ele, não para o fantasma da tela. Ele a pinta sabendo que ela sabe que ele e seu desejo são a grande ameaça dela. Assim, o fantasma da tela pode ser visto como  ele imaginava que ela o via, transformando-se num inconsciente auto-retrato psíquico de Gauguin. Nos dois casos, ele é um demônio avassalador quando perto de uma adolescente nua. É um jogo de espelho, uma metáfora visual fantástica e incompreendida quando exposta.

Sua obra prima mais conhecida é um painel pintado no Taiti, pertencente ao acervo do Museu de Arte de Boston e cujo título “De Onde Viemos? Quem Somos? Para Onde Vamos?” é o reflexo de sua perplexidade frente ao mundo, ao seu mundo particular e à biografia de seus ancestrais. O quadro é tão importante quanto o seu título. São três perguntas que ele faz a todos nós em público e, em particular a si mesmo e a seus antepassados, numa demonstração inconsciente de sua procura por uma resposta ao seu isolamento e loucura. É o único quadro da pintura ocidental cuja leitura deve, ao contrário de nossa escrita, ser lido da direita para a esquerda. Nele está contida a descrição das passagens das estações da vida através de figuras estáticas, com uma velha no canto esquerdo e uma criança no direito. Se lido da esquerda para a direita, pode ser interpretado como um pedido, na velhice, para ser criança novamente, uma oportunidade para recomeçar; como se fosse possível reverter seu mundo. É o seu legado de beleza, de técnica apurada, de cor e de poesia pictórica. Morreu aos 55 anos de idade, no dia 8 de maio de 1903, nas Ilhas Marquesas, quando já era imortal.

Últimos artigos do Carlos Perktold