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produção de alguns pintores, escultores, desenhistas, escritores e outras formas de manifestações artísticas que, pela baixa qualidade, vão se diluindo, perdendo-se no tempo e no espaço e somem no horizonte intelectual de todos. Isso ocorre também pela falta de exposição, pelo desinteresse dos leitores, dos colecionadores e do próprio mercado de arte. Seus autores vêm suas bagagens serem enterradas antes de eles próprios. Por ironia artística, quando morrem de fato, algumas pessoas se admiram de sabê-los ainda vivos até aquela data, tão antecipadas foram suas mortes artísticas.

Não é este o caso de Inimá de Paula (1918-1999), cujo décimo aniversário de morte é registro saudoso. Sua bagagem pictórica é constituída de acervo reluzente construído durante mais de sessenta anos de carreira. Sua pintura é cheia de vida, marcada pelo fauvismo de mesmerizante beleza, pela presença constante das cores complementares, pelo ritmo e equilíbrio das composições e pela preocupação com a razão de ouro. Esta é importante desde os antigos gregos, que a praticavam sem conhecer matematicamente o que Lucca Paciola descobriu no século 16 e que, agora, a arte contemporânea julga desnecessária, algo que Inimá lamentava. Sorte nossa que sobrevivemos para continuar a aplaudi-lo durante esses dez anos e também das gerações que virão, pois nosso artista de Itanhomim era imortal muito antes de morrer.

O seu último autorretrato a óleo foi pintado aos 80 anos de idade, sete meses antes de sua morte. Ele contém a condensação do reconhecimento pessoal das inexorabilidades da vida: a velhice, a doença e a perspectiva da morte. O reconhecimento é sempre um mérito pessoal porque, apesar de limitado, o ser humano em geral vive como se fosse onipotente e eterno. Pensando como se fôssemos o jovem de sempre, custa-nos e aos nossos próprios olhos ver o nosso envelhecimento. Só o acúmulo das experiências pessoais, impossíveis de serem transmitidas em nossa cultura, nos ensina o caminho da sabedoria e a ver como tolice a onipotência dos jovens. A sete meses do seu falecimento, Inimá se via no estado que seus amigos lamentavam: a doença estava lhe destruindo por dentro e era visível a sua transformação física a cada novo encontro. A morte, último ato implacável da vida, pegou-o quando o artista já a esperava.

Aquela transformação, que ele não comentava e os amigos viam com tristeza, está descrita neste último autorretrato sobre madeira: ele mostra seus ralos cabelos e barbas brancas, a falta de rugas acentuadas que o tempo, complacente, não lhe reservou, o pálido rosto que se desvitalizava, exposto sem vaidade pessoal e com estonteantes cores. Tal como o poeta que se expunha “cruamente nas livrarias”, aqui ele se expõe cruamente ao espectador. Apenas o seu olhar, visível na transparência das lentes dos óculos, continuava o mesmo do jovem de 19 anos que, em 1937, vestido de terno e gravata e debruçado sobre um quadro no cavalete, é visto em sua fotografia contida na página 20 do livro “Inimá”, de autoria de Frederico de Morais e publicado em 1987 por Leo Cristiano Editorial. É o mesmo olhar de perplexidade sobre sua vida e de seu futuro pessoal como artista em um Brasil que, naquele momento, valorizava tão pouco as coisas do espírito. Dúvidas sentidas, mas desnecessárias e inúteis, porque sua consagração como pintor e artista ocorreu desde sua primeira exposição individual avalizada por Portinari e pelo embaixador Josias Leão, em 1948. Apesar de seu permanente sucesso, o olhar contido neste autorretrato aos 80 anos mantém a mesma dúvida quanto ao seu futuro, agora estreito, incerto e o presente devastado por doença incurável. É também o olhar de alguém que conhecia e temia os seus demônios internos e por cujo exorcismo se debatia sem cessar.

Inimá viveu sua vida com o talento que Deus lhe deu e com dois mecanismos de defesa do ego descritos na psicanálise e que lhe garantiram a imortalidade: a sublimação e a formação reativa. Aquela é frequente em atividades artísticas e, em Inimá, ela está representada e contida na beleza do conjunto de sua pintura. A formação reativa, demonstração externa do oposto que se sente, está na alegria das cores exuberantes que contrastam com a sua quase permanente melancolia, dois mecanismos que, além de nos ter garantido acervo que honra o Brasil e Minas Gerais em particular, transformou-o em emérito fauvista, atributo que ele aceitava com alegria. Por tudo isso, o seu autorretrato traz, sem que ele percebesse, o toque de Midas, aquele plus que ele sabia ser portador e que ficava registrado concreta e sutilmente no suporte pictórico a envolver qualquer das suas composições: o presente dos deuses de brilhante pintor, e um outro plus do qual ele, modesto, achava que apenas o tempo confirmaria: sua permanência como pintor e artista.

Artistas, com frequência, são como escritores que deixam seus originais nas gavetas, no computador ou ficam perseverando o texto de memória, alterando-o em pequenos detalhes construtores do texto ideal ou à espera de sua decantação para publicá-los com as palavras e as frases exaustivamente elaboradas. Assim, alguns romances e contos são escritos durante anos e o leitor jamais percebe o tempo internalizado do autor. Com pintores ocorre o mesmo. Como hábil desenhista, alguns dos quadros de Inimá foram pintados em poucas horas e equivalem a um conto bem escrito. Outros, como se fossem longos romances cheios de personagens com muitas histórias para contar, demoraram anos. , em conhecida coleção belorizontina, um painel de sua autoria, que representa várias operárias do amor à espera de trabalho, uma beleza de ritmo, equilíbrio e cores. Esse “texto” demorou anos para ser escrito e somente ficou pronto quando lhe foi esclarecido que era bom e que faltava apenas a “revisão” para publicá-lo. A revisão, no caso, era preencher o esboço com as cores contidas hoje no painel.

Mas o seu legado não é somente de autorretratos e de figuras humanas. Inimá foi, sobretudo, o paisagista capaz de transformar cenas rurais, citadinas ou um canto de favela em poemas pictóricos ou um arranjo de flores em ode à pintura, asserções comprovadas no acervo em comodato do museu em Belo Horizonte que leva seu nome e em centenas de coleções pelo nosso país. É também de exímio retratista de jovens amigos como Jano, filho do também saudoso marchand Sálvio de Oliveira, cuja beleza aos vinte anos de idade, em 1972, ficou registrada com os longos cabelos fashion e a roupagem do modelo com o eterno macacão jeans, rosto construído e marcado pelas cores que faziam o pintor e todos os seus retratados serem identificados de longe. Neles, Inimá se colocou como o anti-Oscar Wilde, invertendo o jogo do personagem Dorian Gray daquele autor irlandês: todos os modelos envelheceram, mas continuam jovens nos seus retratos sobre tela. Naqueles sob encomenda, ele não era diferente e, hoje, formam um conjunto de rostos tão bem executados que, no futuro, talvez seja possível descrever com certa precisão psicológica o caráter dos modelos. Todos os retratados dão dupla mensagem ao espectador: ficaram registrados como mensageiros da posteridade do pintor e imortalizados pelo pincel do artista.

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