Há dois atributos que se exigem de um artista antes de sua consagração: que ele tenha talento, algo que tornará seus trabalhos vistos com respeito pelos grande e especializado públicos, e a determinação, a segurança pessoal de que produz algo que o próprio artista valoriza. E que ele os transmita ao espectador. O primeiro item vem de uma região somática ainda desconhecida ou como um presente de Deus por critérios determinados apenas por Ele. O segundo vem com os anos de vida nos quais as vicissitudes, as adversidades e os obstáculos impostos pela vida foram vencidos e o artista chega aos 45 ou 50 anos de idade com a mesma determinação de quando era uma jovem promessa. Aí começa a sua definitiva consagração. Há uma quantidade enorme de “artistas”, até com obras em museus que, começando cedo, brilharam até os 25 ou 35 anos de idade e, como uma chama em palha de milho seco, brilharam curto tempo e se apagaram rapidamente. Olhando seus trabalhos hoje nos museus ou em eventuais leilões de arte nos quais uma ou outra peça é vendida/comprada por novos interessados, o espectador veterano não consegue explicar por que alguém capaz de produzir no passado tanta beleza, deixou que a brilhante chama que a criou se extinguisse com tanta rapidez. 

  Há outras pessoas cujo destino, para o bem ou para o mal, parece ser traçado por três gerações antes da sua e uma das representações dele está no incomum nome de batismo, habitualmente dado pelo pai. É incrível a quantidade de nomes usados nos nossos dias que fará da vida do seu dono o pagador dos pecados dos pais, tão complicados eles são. No passado, as pessoas eram mais simples e não tinham preocupação de achar que nome difícil de pronunciar e escrever seriam sinônimo de celebridade. Por tudo isso, imaginem alguém no interior de Minas no início do século 20 receber o nome de Manfredo, tão germânico quanto Regulo é suíço, dado pelo bisavô de Manfredo de Souzanetto ao seu futuro avô, e repassado ao neto como homenagem do filho ao avô querido. Claro que não é somente o nome que faz as pessoas serem o que são, mas ele parece conter na sua etimologia a mesma magia que as palavras têm para a literatura. Dessa forma, o destino de Manfredo Alves de Souza Neto parece ter começado no seu bisavô, batizando seu filho com o ousado e incomum nome para o interior de Minas e, posteriormente, seu pai repetí-lo no filho, a homenagear o avô. Uma circulação de afeto ocorre entre esses familiares e suas obsessões pelo germânico nome que, crêem muitos, ajuda no destino de cada um. A “ajuda”, na realidade, é sentir-se amado, algo que nos fará corajosos viajantes para longas jornadas na vida. 
  Manfredo de Souzanetto, nome artístico e sobrenomes escritos assim mesmo juntinhos como convém a avô, pai e neto afetivos, nasceu em 1947 e, aos 62 anos, mantém os atributos descritos no parágrafo que abre este texto. Ele pertence àquela categoria de artistas que nunca desistiu, sabedor de que com o talento e a garra que a vida lhe deu, se afirmaria como artista definitivo. Conheci-o no final dos anos 1960 quando trabalhávamos na mesma empresa e ele, ainda desconhecido e não podendo viver de sua arte, dedicava-se ao trabalho administrativo-burocrático em troca do salário que o mantinha em Belo Horizonte. Quando vi seus trabalhos pela primeira vez, eu era um jovem tolo, sem o aprendizado no olhar que apenas o tempo me deu, e eu fazia outras bobagens na vida além de não ver a beleza de seus desenhos com lápis de cera, aquarela, ecoline e nanquim sobre papel, todos com o mesmo conteúdo, forma, cores e transparências que vejo hoje, mas que eu, apenas muitos anos depois, reconheci e reverenciei. 
  Manfredo é dos poucos artistas mineiros que não pode se queixar de Minas Gerais, habitualmente ingrata com seus filhos ilustres e talentosos. Em 1975, insistiu em ser reconhecido em sua própria terra e aqui recebeu o 1º Prêmio do V Salão Nacional de Arte Universitário, partindo para Paris naquele ano e contrariando minha asserção da falta de reconhecimento pelos mineiros. Fez mais que ganhar prêmios em Belo Horizonte e posteriormente pelo país afora: como um profeta pictórico, previu que nossas montanhas desapareceriam com a corrida imobiliária assombrando a Serra do Curral que cerca nossa Capital. Transcorridos mais de trinta anos de seu premiado slogan e obra “Olhe bem as montanhas...”, que viraram adesivos vistos em automóveis pelas ruas de Belo Horizonte e título de texto do nosso bardo maior, Carlos Drummond de Andrade, sua previsão e a de seus colegas de paleta se tornaram triste realidade. Quem duvida, faça uma visita ao bairro Belvedere, em Belo Horizonte, região na qual há dezenas de legislações proibindo construções multifamiliares e, no entanto, ali encontrará 250 prédios de apartamentos prontos e habitados. Eles, os prédios, claro, cegaram as montanhas, impedindo-as de ver o horizonte que um dia foi belo daquela outrora chamada Cidade Jardim e vedaram os olhos dos seus habitantes de as verem no seu esplendor. Atendendo ao seu pedido e olhando as montanhas hoje, vê-se a literal e concreta previsão de Manfredo de Souzanetto e se compreende melhor os seus desenhos, proféticos alertas e mensagens ecológicas de então. Além da beleza, há nos seus desenhos desta fase a tristeza interior do artista que se vê impotente frente ao que previa e, extemporâneo de seus contemporâneos, não foi compreendido na sua denúncia como deveria. As mazelas capitalistas de nosso país viajam com tanta cupidez que nos fazem pensar que se os Alpes suíços fossem no Brasil, veríamos todos eles cobertos de prédios de apartamentos com vista para o nada. 
  Mas a carreira de Manfredo não se resume em ser profeta ecológico. Saindo de Minas  premiado com bolsa para estudar em Paris, ali permaneceu por quatro anos, pois ao findar sua primeira  recebeu  nova bolsa, desta vez concedida pelo governo francês. Este e a própria Paris, escolhida por Picasso e Chagall para viver e produzir e berço de tantos “ismos” na história da pintura, reconheciam o talento do artista nascido em Jacinto, norte de Minas, quase divisa com Bahia e cuja presença em Manfredo ainda está marcada no sotaque de um mineiro que aprendeu a falar “baianês” antes de dominar a língua de Voltaire. Em 1980, Manfredo fez como tantos outros escritores, jornalistas, pintores e intelectuais mineiros de gerações anteriores fizeram: partiu para o Rio de Janeiro onde continua sua carreira.
  Em artistas que percorreram aquelas provações citadas acima e nos anos necessários para se consagrarem, é lugar-comum se falar em “trajetória” de seus trabalhos. Ela precisa ser coerente, ter unidade e se manter dentro de linearidade que faz o espectador de seu trabalho de hoje compreender o de ontem e entender o caminho percorrido pelo artista nos anos de luta. É assim com a carreira de Arcângelo Ianelli e de seu irmão Tomás, é assim com Portinari, Di, Tarsila, Anita Malfatti, Milton Dacosta e tantos outros artistas brasileiros. Com Manfredo não é diferente. Ele fez percurso que começou no exaustivo e necessário desenho, passou para a pintura, e chegou à escultura acrescentando pintura sobre ela, de tal forma que há obras nas quais não é possível assegurar com certeza se se trata de pintura ou de escultura. O conteúdo de cada técnica é coerente e caminha para a difícil simplificação. Fixadas nas paredes, suas esculturas parecem desenhos de linhas seguras de alguém que demorou anos para aprender a executar com simplicidade enganosa o resultado de seu ofício em poucas horas. Penduradas nas paredes, suas telas estão cercadas por discreta madeira, metáfora do que as montanhas de Minas são para seus artistas. Manfredo na sua mineiridade universal criou figuras geométricas nas quais o triângulo, presente na história de Minas desde a Inconfidência Mineira e com certa frequência em obras de outros pintores nascidos em Minas Gerais, é uma constante, sem que outras formas sejam descartadas. Pelo contrário. Suas incríveis dobraduras de madeira nos fazem pensar que houve um corte em uma grande prancha e, dela, ele tirou o desnecessário. Com atenção, o admirador de seus trabalhos verá que ele fez na madeira o que muitos conseguem apenas na chapa de aço. Souzanetto foi mais longe e fez o que a maioria dos pintores consagrados recomenda aos jovens artistas: procurem criar as suas próprias cores de tal forma que, de longe, alguém identifique o seu amarelo, o seu azul, o seu verde e outros matizes. Manfredo, utilizando o pigmento da terra de Minas e seu minério, realizou a recomendação dos seus colegas de paleta mais experientes. Mas não se restringiu ao ocre do minério: sua paleta tem cores variadas e todas próprias de Manfredo. Hoje sua obra tem o equivalente daquilo que a literatura chama de estilo, um conjunto de formas, conteúdos e cores que o transformam na singeleza de Manfredo de Souzanetto, um nome consagrado pelo que faz em arte. 

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