Se o leitor ainda não teve a emoção de conversar com um personagem saído de um romance arrebatador ou de um dos filmes de John Ford, precisa conhecer Konstantin Christoff. Seu porte físico, a conversa inteligente e o humor fino o fazem uma espécie de Larry Durrel, fascinante personagem de Somerset Maugham em O Fio da Navalha, romance dos anos 1950. Konstantin é um brasileiro, por acaso nascido na Bulgária, morador há mais de 70 anos em Montes Claros (MG). A cidade, em 1928, ano em que lá chegou seu pai, era pequena, distante de tudo e de difícil acesso. Mas foi o local ideal para quem, como ele, precisava viver discretamente em lugar impensável por integrantes do então governo de Sophia que tentavam localizar um revolucionário que havia abandonado seu país às pressas para sempre. Nem o pai e nem a mãe comentavam sobre o passado, descoberto apenas através de um conterrâneo bem informado. Konstantin só soube dessa atividade política e o motivo de morarem naquela cidade, muito depois da morte dos dois. Esse bravo guerreiro, de revolucionário frustrado em seu país, passou a agricultor, ensinando os montesclarenses a comer tomates, couve-flor e verduras, como afirmou Darcy Ribeiro, um amigo de sempre. Seu filho Konstantin chegou ao Brasil acompanhado da mãe  em 1933, com nove anos de idade e há vários sem ver o pai.

Conversar com ele é a alegria intelectual de que nos falava Oscar Wilde. Sua fala é tão interessante quanto a dos personagens literários ou hollywoodianos, com a vantagem de ele contar casos da Belo Horizonte de 50 anos atrás, envolvendo lembranças de pessoas tão interessantes e de passado histórico tão ligado a nossa Capital quanto ele. Nesse rol podem-se incluir: Aníbal Mattos, Perone, Genesco Murta, Narciso e Amílcar Agretti, todos pintores. Incluem-se ainda o mestre Guignard, quando chegou a Belo Horizonte para fundar a escola de arte que hoje leva seu nome e da qual saíram os mais importantes artistas mineiros daquela geração; Isaías Golgher, brilhante historiador e intelectual mineiro, quando ensinava aos garotos do Brasil as delícias de colecionar figurinhas e com quem Konstantin colaborou as desenhando; Herculano Campos, quando era doublé de fotógrafo e pintor no edifício Cecília, iniciando uma amizade que perdurou por toda a vida; Inimá de Paula, quando voltava do Rio, cheio de confiança depois da exposição em 1948, apresentado em catálogo por Candido Portinari; Chanina, como jovem estudante e futuro colega de medicina e de paleta; vários professores da Escola de Medicina que se tornaram célebres no metier médico e intelectual de Minas e mais uma quantidade de personagens que deixariam o leitor apaixonado.

 Mas Konstantin não é apenas o conversador a prender o ouvinte pelo conteúdo de sua fala. Sua primeira contribuição ao nosso Estado foi como médico da Santa Casa de Misericórdia de Montes Claros. Graduando-se em 1948 pela UFMG, especializou-se em cirurgia geral e em plástica corretiva, fazendo um sem-número de operações que o transformaram num mito no norte de Minas. Colaborou na fundação da Universidade Estadual de Montes Claros e na sua Faculdade de Medicina da qual foi seu primeiro professor de técnica cirúrgica. Suas décadas de atividade nessas instituições confirmam a asserção.

 Com um rosto redondo e incomum no brasileiro e um certeiro physique-du-rôle de um profeta ou talvez de um anjo eslavo de longos cabelos, poderia também ser o modelo para um personagem do barroco mineiro, se não fosse a barba cobrindo suas bochechas. Mas todas essas menções eclesiásticas não o transformam num católico fervoroso. Ao contrário. Ele faz questão de se declarar pagão e ateu, optando por seguir as ovelhas negras de qualquer rebanho, apenas para sentir o prazer do inesperado da vida. Não é sem motivo que utilizamos o verbo “pintar” no sentido de um fazer astuto, vantagem da sua polissemia no cotidiano.  Considerando sua talentosa arte de anos e a sua contemporânea via sacra, das quais falaremos abaixo, não há ateu mais religioso neste país, sobretudo se considerarmos que ele é o criador do oitavo pecado capital, a omissão, idéia que a Igreja Católica deveria aproveitar. Esse novo, tão freqüente no mundo contemporâneo, fará parte da nova série de obras a serem executadas nos próximos meses contendo os sete tradicionais.

 Sua pintura tem dois tours-de-force inquestionáveis. O primeiro é constituído de seus auto-retratos e mudou a face desse conteúdo na pintura brasileira. Gozador, se pinta nu, de costas, barrigudo, de lado, sentado, em pé, de tênis, de terno, em pequena porção física e até vendo o mundo entre as pernas, de ponta-cabeça, como se essa fosse a melhor forma de ver a parreira de uvas azedas em que o mundo globalizado se transformou. Não há em qualquer deles a preocupação da seriedade de um auto-retrato formal dirigido para a posteridade. Nosso artista, já imortal, não se preocupa com ela. Ele se pinta e se coloca junto de todos os personagens do século 20 que, de alguma forma, foram importantes na vida dele ou na cultura ocidental, dando preferência aos iconoclastas gozadores, anarquistas, artistas, bandidos e um monte de gente comum como literais vizinhas e amigas. Mistura todos os tipos, como se seus quadros fossem uma história bem contada, cujo somatório é a projeção de um outro auto-retrato da vida real: a de eterno brincalhão, daqueles que têm o bom humor irritante às seis da manhã. Assim, o conteúdo de parte de seus quadros, autênticas gozações pictóricas artísticas, é o reflexo de sua vida pessoal. A quem não acredita, recomenda-se a convivência com ele numa mesa de bar ou na intimidade de um living.

Seus auto-retratos foram objeto de uma inesquecível exposição no Palácio das Artes em Belo Horizonte em 1986. Antes, haviam sido expostos na Galeria de Arte do antigo Banerj, no Rio e, em seguida, no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo; no Museu de Santa Catarina, em Florianópolis; retornando a Montes Claros para, partindo novamente, serem expostos no Teatro Nacional em Brasília. No Rio a mostra encantou e impressionou Ziraldo, um dos maiores artistas gráficos do Brasil. O encantamento, de resto a ocorrer a qualquer espectador sensível, é motivado pela sua paixão pelas cores, colocadas em cada elemento da composição como se elas fossem amigas de fácil compreensão. Sabemos serem elas velhas senhoras de trato difícil, paradoxalmente alegres e mal humoradas, ranzinzas e zaranzas quando colocadas em lugares que não lhes convém e onde  brigam entre si, causando atritos visíveis para o espectador. Konstantin as conhece bem e sabe onde colocar cada cor de tal forma que o espectador tem a certeza de só ver harmonia onde haveria a sua antítese se não fosse o seu talento para administrar a festa que é qualquer de suas obras. Mas não são somente as cores a brilhar nas suas composições. Mestre na técnica do desenho, nosso artista de Montes Claros se dá ao luxo de achar que, com ele, faz charge na tela. Faz sim, mas transformado e acompanhado de muito mais do que aquela quer nos dizer.

A arte deve ser o reflexo de sua contemporaneidade, por isso é possível que a sua Via Sacra, realizada em 1988-1989, seja, quando vista dentro de 200 anos, um registro metafórico de nossa época. São 16 quadros, todos inusitados. Comentá-los neste texto não daria ao leitor a dimensão de sua importância, e que se adquire apenas com a visão de seu conjunto. Mas, como se trata de peça de resistência de sua criação, é necessário citar alguns desses passos. O primeiro é A Ceia, dividido em três partes nítidas. No meio aparece Jesus oferecendo a comunhão para o artista, visto num auto-retrato quando jovem. Seu formato oval nos lembra as fotografias de família realizadas nos anos 1940, ou antes, e que eram objeto de decoração em casas simples. Se isolado do conjunto, Jesus é um quadro moderno e existente por si só. Da mesma forma, o lado esquerdo com o auto-retrato infantil. Somados, constituem uma peça que resistiria ao seu propósito, mesmo sem suas laterais.  

      Estas são colagens e pintura a representar os conflitos sociais de nossa época. O lado esquerdo tem poucos elementos na composição e bastante espaços em branco, fazendo o conjunto respirar. No alto, há uma criança bem nascida pronta para a trajetória de quem encontrou o pote de ouro no fim do arco-íris. Com este patrimônio, ela construirá um acervo suficiente para suprir as necessidades da vida: alimentação, saúde, vestuário, atenção, afeto e cuidados. Esta parte é a biografia de alguém que fará o percurso idealizado por todo pai amoroso, aquilo que Jesus imaginou para seus filhos. Do lado direito há a presença de Deus irado, representado por dois raios caindo sobre nós, além da realidade cruel, vista pela falta de espaço para respiração dos elementos da colagem sombria. Nesta há retratos de filhos indignos, figuras trágicas de nossa civilização, fotos de gente famosa e comum e reproduções de cenas e quadros cujos conteúdos representam o que tivemos de melhor e de pior para mostrar ao futuro. É a visão de Deus sobre o mundo no século 20 e a reconstrução do contemporâneo Labirinto de Dédalo em que nos metemos. Sem uma Ariadne moderna para nos ajudar, somos devorados pelo avassalador conteúdo do qual não nos damos mais conta. Daí a importância da inscrição acima do quadro “muitos de vós me trairão”. Judas, como Caim, são vários e estão perto de nós.

           A face de Cristo continua a razão de ser na estação Verônica Enxuga o Rosto de Jesus, mas, na versão de Konstantin, está presente a maior das perturbações do século XX, a causa da morte de literalmente milhões de filhos de Deus. Autêntico excremento do inferno, o dinheiro registra a sua importância na reprodução da nota de um dólar com o rosto de Cristo, ostentada por Marilyn Monroe como se fosse um troféu. Marilyn é a colorida harpia entornando a contemporaneidade que, visto de perto, são rostos daquilo que nosso imaginário fantasiou como capitalistas. Vistos de longe ou de relance, são percebidos como caveiras.

 A estação O Desnudamento é uma obra-prima. Nela o desnudamento compreende duas figuras numa cena avassaladora. O Papa, um auto-retrato do artista num ambiente de alto luxo, é visto confabulando com um moderno grã-fino de smoking. A primeira leitura é de um conluio entre ambos com o objetivo de lesar Os Retirantes, de Portinari, visto no fundo do quadro. Apenas numa segunda leitura pode-se interpretar a cena como a confissão daquilo que o Homem, visto como um rico integrante da alta sociedade, fez com os mesmos retirantes algo muito grave, tão grave que apenas o representante de Deus na Terra é capaz de ouvir, não se chocar, compreender e perdoar. É tarefa divina, se considerarmos as injustiças sociais representadas no quadro de Portinari.

Se dei ao leitor a impressão de, estando defronte da Via Sacra de Konstantin, estar diante de algo menos que 16 peças lindíssimas, cometi uma injustiça. O conjunto é uma apaixonante obra prima pela presença de nossa contemporaneidade, pelas encantadoras cores e composições de quadros grandiosos em tamanho e conteúdo, incluindo um representante do pensamento de Teilhard de Chardin: O Ponto Ômega, a 16º estação, uma reflexão dele sobre o futuro do ser humano, que fazem delas uma unidade ímpar. É peça de gente fervorosa a imaginar que não é abençoado por Deus.

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