Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) jamais se queixou com seus amigos e alunos de ter recebido rasteiras da vida durante sua infância e na vida adulta. A primeira delas foi ter nascido com o lábio leporino. Este, como se sabe, dificulta o nascituro de se alimentar, angustia os pais, em especial, a mãe, que não consegue fazer o filho engolir o leite materno. Depois, há a dificuldade para aprender a falar, sofrer constrangimentos por causa da pouca sonoridade da voz e, no caso de Guignard, ainda permanecer durante seus 66 anos de vida a se desculpar pelos embaraços sociais durante as refeições: “não é minha culpa, nasci assim”, dizia ele. Outra rasteira é aquela de ter pai morto num “acidente” com arma de fogo. Qualquer pai suicida provoca um vazio impossível de ser preenchido na vida do filho desesperado que, impotente, não compreende a dimensão do trágico gesto paternal. Se a atitude é triste para filho adulto, pior quando ele é criança. Essa nefasta postura provoca uma perplexidade paralisante e um sentimento oceânico indizível e impossível de se nomear, invadindo o psiquismo do infante para sempre. Esses filhos abandônicos são os únicos seres humanos que podem repetir a frase de Cristo no momento de seu desespero:“Pai, por que me abandonaste?” Para Guignard foram violências abrindo feridas que, se algum dia foram curadas, deixaram cicatrizes exuberantes no íntimo do artista.

Por isso, o mundo interno de Guignard não foi tão colorido quanto seus quadros com os belos matizes e comoventes composições. Em seu mundo pictórico há um paradoxo de composições alegres, e outras melancólicas e tristes. Naquelas primeiras, o expresso desejo de uma vida feliz e nas segundas, a confirmação daquele interior. A vida tão generosa ao doar o talento, deu também aquelas duas rasteiras iniciais, reservando-lhe outra surpresa angustiante para o futuro. Adulto e apaixonado, casou-se com a musicista Ana Döring. Conta a lenda que esta o abandonou logo após o casamento, trocando-o por um aventureiro. Coloque-se leitor no lugar de Guignard e imagine a sua angústia do nascimento, a de ter pai suicida, acrescida de ser noivo abandonado. Apesar da violência matrimonial, ele nunca esqueceu a mulher, tornando-se, a partir de então, um amor e um casamento idealizados. Com a morte da mãe, de sua única irmã e o sumiço do detestado padrasto, esse herói fica sozinho no mundo. Nosso pintor maior morreu solteiro e sem filhos, há cinqüenta anos, em 26 de junho de 1962, levando consigo os mistérios de uma biografia que jamais será completada. Melhor para ele. Mensageiros de deuses e divindades devem ter biografias misteriosas. A vida, sem que ele soubesse, empurrou-lhe um acordo no qual lhe prometia imortalidade em troca de sofrimento. E cumpriu sua promessa.

Diante de biografia tão desesperadora fica um pergunta: onde o nosso bravo artista colocava suas dores infinitas, o sofrimento de quem nasceu com lábio leporino, teve pai suicida e de marido abandonado? No alcoolismo é hipótese mais que provável, mas o alcoolismo sozinho não é tão “vasto” para deixar caber tanta angústia em artista tão sensível. A resposta pode estar na defesa psíquica da formação reativa. Sentindo-se deprimido e melancólico, Guignard exprimia sua dor expondo seu oposto, a alegria das cores e levando uma vida pessoal sem rancor. Mas é possível também que, tal como há um texto subjacente na boa literatura, ele tenha deixado um recado subjacente da sua dor nos seus quadros, uma marca inconsciente do que sentia na sua intimidade por intermédio de certas paisagens, mesmo naquelas contendo os alegres balões da festa de São João e suas obras sacras, sobretudo Cristo e São Sebastião. Suas figuras do filho de Deus deixam o espectador perplexo pela estranha e devastadora beleza e pela dor expressa em suportes simples como um papel de 10x15 cm, no qual uma aquarela, arrasadoramente bela, mostra toda a dor de Jesus crucificado e, por projeção e identificação, dele próprio, algumas delas, inclusive, trazendo Cristo com lábio leporino. O mesmo ocorre com o sofrido São Sebastião de quem ele era ardoroso devoto.
Guignard é unanimidade nacional, um artista consagrado e talentoso, mas não é santo. Nenhum artista o é. E ele nunca teve pretensão a tal, mas, com certeza, foi um dos escolhidos de Deus e, dos pintores brasileiros, é o que mais perto d’Ele chegou.

Últimos artigos do Carlos Perktold