Quem viu Carlos Bracher pintar, sabe que é um ritual de energias sagradas. Primeiro é necessário ouvir um concerto barroco. “Canon” de Pachelbel é o mais-que-perfeito. Bach ou Handel, com pequenas concessões para Jean Michael Jarre, também são freqüentes. Para presenciar o ritual e participar dele como espectador, a música precisa ser ouvida alta, comme il faut. O ambiente é um atelier caseiro de Ouro Preto, o que, por si só, é um alento para nossa alma globalizada. Do somatório desses elementos faz-se uma equação de barroco+barroco = uma pintura soberba. Como num concerto anunciado, basta aguardar.

A “orchestra” está no cavalete. O maestro esfrega as mãos e olha a tela branca à sua frente. É a sua vítima agradecida. Fusain preso nos dedos, marca nela os traços básicos da composição, materializada como um fantasma desperto. Em seguida, é a vez do pincel ou da brocha nas mãos. Cobre, então, rapidamente as imagens do carvão com as cores pré-escolhidas. Aquelas desaparecem, ficando retidas apenas na sua visão interna. Na memória visual do pintor o quadro está pronto.

A cada minuto de pintura, ele nos mostra formas e conteúdos que se modificam a todo momento. Pura mágica. Na tela, traços seguros marcam o centro da composição. A partir daí, são movimentos fixando cada compasso dessa sinfonia pictórica.

Bracher fez tudo isso quando pintou o retrato do jornalista Geraldo Magalhães. Em menos de dois minutos, literalmente, lá estava o modelo num desenho a carvão na tela e que até hoje nos penitenciamos de não lhe ter recomendado parar, assinalar o tempo, assiná-lo, fixá-lo e começar outro. Hoje existe um belo retrato a óleo, mas o desenho magistral de dois minutos perdeu-se para sempre.

Bracher é assim. Desenha e pinta rápido, com a simplicidade de traços que trazem resultados reservados para aqueles que têm o talento. Pintando é impiedoso com a tela, com as cores, com os pincéis e até mesmo com as molduras, depois que sua obra está assinada. Mantém com esses materiais uma relação de senhor dominador e eles respondem agradecidos, porque sabem que o resultado é a recompensa da beleza perene. É pintura de grande massa, ocupando a tela com atividade e movimento, tão característicos do barroco.

Os trabalhos iniciais de Carlos Bracher indicavam uma contínua elaboração pictórica, perceptível apenas para quem acompanha o trabalho do artista durante uma vida ou numa retrospectiva. Ele nunca fez opção por meias soluções ou efeitos fáceis para agradar público ou mercado, optando pelo que acreditava e ao que era sincero.

Mineiro de nascença, de escolha, de fé e de alma, vive nas montanhas de Ouro Preto há mais de trinta anos e as usa, não para se cercar e proteger, comportamento tão próprio de nossa gente. De lá é possível avistar sua mineiridade universal que está no conteúdo do barroco mineiro, nas paisagens de Ouro Preto, Congonhas, Prado, Tiradentes e até dentro da usina de aço. Aço nos remete à força de uma chapa espessa desse material, mas nos associa à leveza do flandre que seus quadros transmitem trazendo ainda consigo as exigências da magia que toda obra de arte requer: cor, equilíbrio, composição, tensão e um mistério que nos intriga, instiga e nos inquieta de forma agradável.

Mas se é preciso despertar o desenhista ou o retratista de alma, esse tema tão difícil e reservado apenas para os presenteados com o talento absoluto e, infelizmente, ainda tão maltratado pelas entranhas do mercado de arte, aí está ele, atuando como um Rei Midas moderno, onde tudo que toca vira arte. Fidelíssimo a si mesmo, sempre se manteve longe de qualquer modismo, essa eterna máscara da morte em arte, conservando nas suas composições singularidade de ser apenas Bracher, dono de seu estilo, senhor de si mesmo.

Aliás estilo próprio de alguns mineiros como Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade e Guignard, o dono das Minas Gerais. Vindo de uma geração que não conheceu pessoalmente o grande divisor da pintura em Minas, Bracher não teve a influência do mestre fluminense-mineiro, o que em Minas, e em especial na sua geração, é de um heroísmo impar. Mas, sábio, deixou-se influenciar por seu amigo, o velho mestre de Barbacena, Emeric Marcier. Houve uma época em que ambos usavam a respiração do suporte como parte da cor da composição e o ocre era a cor preferida dos dois. Esta, como se sabe, é de difícil colocação. Tempos da década de 80, quando o mestre de Barbacena ainda contribuía para a grandeza de Minas e influenciava gente brilhante da geração que se seguiu à dele.

Seus trabalhos comprovam a asserção de que tudo na vida é a longo prazo, mesmo para os talentosos de maturidade absoluta.

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