Fonte: Ferreira Gullar

 A obra Merzbau foi construída por Kurt Schwitters, no decorrer de dez anos, pelo método de assemblage, na sua casa em Hannover

O dadaista Kurt Schwitters inventou uma palavraMerzpara desigar a arte que fazia. Esse nome – pedaço da palavra alemã Komerz – passou também a designar uma revista por ele criada. Os quadros de Schwitters eram compostos com restos de coisas que ele juntava na rua – tampas de garrafa, selos, bilhetes de trem, pedaços de pano – e ia colando na tela. A certa altura – em 1919 –, começou a construir em sua casa uma obra a que deu o nome de Merzbau (Construção Merz), uma espécie de coluna que ia crescendo, a cada dia, ao sabor dos “achados” de Schwitters. Tudo o que ele achava na rua e lhe parecia interessante trazia para casa e o acrescentava à sua “construção”. O Merzbau foi, assim, crescendo, atingiu o teto do primeiro andar, que o artista furou para que a obra continuasse a subir. Prosseguiu acrescentando elementos àquela espécie de árvore artificial ou escultura viva. Já a “escultura” chegava ao teto do segundo andar quando o nazismo tomou conta da Alemanha e deflagrou-se a II Guerra Mundial. Schwitters mudou-se para a Noruega. Uma bomba destruiu este primeiro Merzbau. Em Lysaker, perto de Oslo, ele começa um novo Merzbau, interrompido anos depois com a invasão do país pelos nazistas. Schwitters transfere-se, então, para a Inglaterra e, numa fazenda de Ambleside, em Lake District, inicia o terceiro Merzbau, que foi “interrompido”por sua morte, em janeiro de 1948. Esta obra foi, creio eu, a primeira instalação.

 Com o Dadaísmo, em 1915-16, algo de novo acontece no mundo cultural. Dá-se uma tomada de consciência da situação da arte, da crise que a envolve e da necessidade de uma mudança profunda no comportamento do artista. Conforme observa Alfred Barr, os dadaístas revoltam-se contra a guerra e as convenções vazias da religião e da sociedade, denunciam o rearmamento e as loucuras políticas e econômicas das classes dominantes. “Os artistas – diz o primeiro manifesto Dadá – são criaturas de sua época. A arte mais elevada será a que representa no conteúdo de sua consciência os múltiplos problemas da época.”

 Banem de seu vocabulário as palavras que consideram pomposas – ética, cultura e interiorização – “que são apenas proteção para músculos fracos”. Opõem-se ao comodismo (“ficar sentado, um instante que seja, numa poltrona, é expor sua vida ao perigo”) e à inserção na tradição burguesa, denunciando quem “busca já hoje a apreciação da história, da literatura e da arte e se candidata à aprovação burguesa honorável”. Isto porque, no seu modo de ver, a arte não é fruto das experiências sedimentadas mas nasce da participação na vida diária, o artista deve expor-se aos acontecimentos. Nada de discrição: “O horror à imprensa, à publicidade, ao sensacionalismo, ‘é próprio dos que preferem a poltrona cômoda à agitação das ruas”. A arte é dos homens ativos. “Ser dadaísta pode às vezes significar ser comerciante, político mais do que artista; ser artista apenas por acaso”. O Dadaísmo é, assim, o primeiro movimento artístico de homens que “não se comportam de maneira estética diante da vida”. Os dadaístas abandonam os valores e os instrumentos aceitos pela cultura artística da época e se abrem para “a relação mais primitiva com a realidade circundante”, certos de que “uma nova realidade faz valer seus direitos”. É a realidade da sociedade de massas, das cidades cosmopolitas: “Dadá é a expressão internacional de nosso tempo”.

 Kurt Schwitters toma um caminho próprio dentro do Dadaísmo, muito embora também procure, como Duchamp, apagar as fronteiras entre o homem comum e o artista. Segundo contou Raoul Hausmann, ele andava sempre de cabeça baixa, explorando o chão com o olhar, tendo os bolsos cheios de troços que recolhia, enquanto seguia pelas ruas, a caminho do escritório, com a pasta debaixo do braço. Vê-se então que, no caso dele, o trabalho artístico, o fazer da obra, já não se restringe ao momento em que se recolhe ao atelier para realizá-la: estende-se a todos os momentos de seu dia, mistura-se às suas atividades mais diversas, integra-se, por assim dizer, em sua vida.

 Entre os dadaístas e os impressionistas existe uma relação: ambos saem do atelier para o ar livre e com isto manifestam a mesma necessidade de livrar-se do enclausuramento e abrir-se ao mundo. Mas enquanto os impressionistas saíam para redescobrir a natureza e oporem suas cores vibrantes à vida cinzenta da cidade, os dadaístas aderiram à vida urbana e a aceitaram como uma segunda natureza: Schwitters constrói seu Merzbau com detritos achados nas ruas, como se coletasse restos “arqueológicos” do presente... Ambos trabalham fora da história da arte que, para eles, tornara-se um território fora da história do homem, ou seja, desligado do acontecer cotidiano, le bruit de la rue.

 Por isso, entregando-se ao acaso e negando-se a qualquer perspectiva determinada (o verdadeiro dadaísta é, inclusive, antidadá, porque “os valores mudam a cada minuto”), perdem-se em sua liberdade. Fazer obra de arte dadaísta é uma contradição, pois, se funde a atividade artística com as demais atividades da vida – que por sua vez é vista como a sucessão ininterrupta dos acontecimentos – torna-se impossível realizar uma obra que não seja, ela também, outro acontecimento (happening?) que se dissolve nos acontecimentos seguintes. O Merzbau é, por isso, a obra dadaísta realmente coerente, já que é inconclusível como a vida: só se conclui com a morte do autor.

 


 

FonteRevista Continente Multicultural
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