Fonte: Revista Continente Multicultural

 A atualidade de Aldemir Martins vem da força de sua fidelidade a si mesmo e ao Brasil

Quando Deus criou o mundo, o primeiro lugar que ele fez foi o Brasil. Teve um tempo em que só existia o Brasil. E o Brasil, quer dizer, o mundo começava no Recife, fazendo minhas as palavras de Cícero Dias. Daqui, desta nova Roma de bravos guerreiros, contemplávamos o mare nostrum com as eminências de Telles Júnior e Lula Cardoso Ayres, além de nomes que apareciam nos compêndios, como Victor Meirelles, que pintou a Batalha dos Guararapes ou Rafael na capa do caderno de desenho Raphael.

 Mas o que será que existia de fato no além-mar, no mare ignotus, cujo fragor das ondas ecoava no Cais José Mariano como Portinari e Di Cavalcanti? Eu queria saber. De ter ido lá, ver. Europa, França e Bahia. Comecei pela Bahia que estava mais perto, embora tudo fosse longe naquela época do descobrimento, princípios da década de 50, eu sem conhecer nada nem ninguém.

 

Quando cheguei na Bahia notei que o Brasil ou terminava, ao norte, na Bahia ou tinha pulado Pernambuco, recomeçando no Ceará com Aldemir Martins nesse novo mapa traçado pela Bienal de São Paulo. Só para entender: na verdade fui primeiro, de caminhão, para Feira de Santana, para sair do Recife, marcar minha desistência definitiva da Faculdade de Direito onde estudava, tendo sido a ida a Salvador determinada pela incompatibilidade de gênios entre mim e o meu hospedeiro, o pintor feirense Raimundo de Oliveira. Viajamos de trem: belíssima a chegada à capital, o trem passando pelos alagados, tema freqüente nos quadros do pintor sergipano Jenner Augusto, a quem seria apresentado em seguida por Raimundo, como aos principais artistas da Bahia, o pintor Carybé e o escultor Mário Cravo Júnior que estavam sempre no atelier deste último, onde fiquei asilado. Aí, no atelier de Mário, que ele chamava studio, ouvi falar em Aldemir Martins, premiado juntamente com o escultor, na primeira Bienal, Mário com a escultura de um galo feita de recortes de lâmina de cobre martelado, a qual anos mais tarde em São Paulo eu veria em cima de um armário na sala da residência do advogado paulista Luis Coelho, e Aldemir com desenho de cangaceiro.

 Representando a Bienal o “cosmopolitismo”, como diziam torcendo o nariz os esquerdistas, curioso esse prêmio ter saído para Aldemir, um regionalista. A Bienal de São Paulo fazia pendente com a mais antiga, a Bienal de Veneza, e elas duas serviam como vitrine da arte no mundo todo, os países mandando os seus maiores craques numa disputa acirrada por um prêmio como se fosse uma copa do mundo.

 Aldemir era uma dessas moedas fortes, bom lá e aqui. A Bienal de São Paulo deu a ele um lugar de destaque nunca abalado, ratificado pela Bienal de Veneza, além de muitos outros prêmios importantes que obteve. Aldemir atendia a essas duas expectativas, a chamada linguagem universal, se é que existia, no seu desenho de nanquim a bico de pena sobre o papel em toda a sua pureza, servindo sim para representar cangaceiros e rendeiras, anéis, armas, alpercatas, bornais, sóis, cactus, mas de tal modo intrinsecamente ligados, figuras e trabalho gráfico, a montagem de seus ícones sertanejos organizados em único plano, e as tramas construídas de traços riscados um a um, seus “trabeculados” como dizia o crítico e romancista José Geraldo Vieira, com rigor beneditino como disse Carlos Flexa Ribeiro, que mesmo quando tenha se aproximado da arte abstrata não conseguiu se afastar de si próprio, nunca perdendo o caráter, a identidade, o mesmo ocorrendo à sua pintura que numa segunda época de sua vida retomou.

Para Aldemir foram criados os belos papéis, as superfícies de texturas várias, deixando o desenho o mirrado ofício ou no máximo duplo ofício e a condição de estudo para pintura, escultura ou outra arte e se impondo como uma arte em si, de prestígio extraordinário. O desenho brasileiro da era das bienais era mais respeitado do que a pintura ou a escultura, sendo Aldemir Martins um dos expoentes, quem sabe o principal na opinião de muitos, fazendo parte dessa linha de frente Carybé, Arnaldo Pedroso d’ Horta e o português Fernando Lemos.

 Mas tudo isso faz muito tempo, sendo essa a minha visão aqui dessa nossa distância em décadas e léguas, quando o mundo se dividia em pintura, escultura, desenho e gravura. E é somente assim que consigo ver o mundo até hoje, “fiel a minha gente geração”, como dizia Hélio Feijó. Aí está a atualidade, diria até a perenidade de Aldemir, na força dessa fidelidade a si mesmo e ao Brasil, sempre uma lição.